Retrato de Hans Otte pela sua filha Silvia Otte
Tocar o momento
É um dos compositores mais relevantes da segunda metade do século XX. Multifacetado, difícil de classificar, conseguiu com O Livro dos Sons um registo único, que Joana Gama tem interpretado em Portugal durante o Festival Hans Otte : Sound of Sounds. "Acho que o meu pai estava a tentar abrir uma porta com essa peça", diz Silvia Otte.
De Susana Moreira Marques
Pelo zoom, apenas dá para ver janelas e as cores do outono alemão, mas Silvia Otte traz na sua conversa toda a intimidade de casa. Algures, perto, está o piano que herdou do pai, Hans Otte, onde ele compôs a sua obra mais conhecida, o Livro dos Sons. É a primeira vez que Silvia Otte fala publicamente sobre o pai. Fotógrafa, viveu durante muitos anos nos Estados Unidos da América. Ultimamente, e de regresso à Alemanha natal, tem voltado a debruçar-se sobre as fotografias que tirou do pai - algumas delas em exposição, em Portugal, no âmbito do festival Hans Otte : Sound of Sounds -, álbuns de família, partituras. Tudo serve para reconstituir a sua própria memória, consciente de que essa memória tem um papel para contar a história do compositor alemão, que merece ser redescoberta. É um percurso que passa por Bremen e Nova Iorque, que passa pela relação com gigantes da música contemporânea, como John Cage, e pelos momentos solitários em palco, e que acaba sempre no mesmo: a busca pela descoberta do som, que marca a obra de Hans Otte, e a ideia de que o que fica da vida é o instante que vivemos.
1. A última imagem
Quando penso no meu pai, penso sobretudo na sua alegria. Na alegria que ele tinha enquanto ser humano. Não uma alegria exuberante. Era mais uma alegria generosa. Isso não tinha nada a ver com aquilo que ele compunha.Penso nele assim. Penso nele quando dizia piadas. Adorava dizer as mesmas piadas, que não tinham graça nenhuma, e contava-as vezes sem conta. Ele era uma pessoa diferente. E eu gostava que ele fosse assim. Dizia sempre esta frase. Nem sei se era uma citação de uma outra pessoa, mas dizia-a muitas vezes. Fico sempre comovida quando a repito: "Com choro e gritos vim ao mundo, com um sorriso deixo-o". E foi isso mesmo que ele fez.
A última vez que o fotografei foi quando ele estava a morrer. Fotografei-me a mim com ele. A minha mãe tem penduradas as fotografias dele jovem, feliz, maravilhoso. Mas eu tenho essa fotografia dele comigo, pouco antes da sua morte, no meu espaço de trabalho. Cada vez que estou triste, olho para essa fotografia. Porque ele sorriu no final da vida.
Acho que isso resume o meu pai: passou por tantas provas e tribulações, passou pela [Segunda] Guerra, por uma infância difícil, por muitas lutas na sua vida e carreira, mas, não sei como, estava sempre bem. Nunca o ouvi queixar-se. Era até estranho.
Quando ele dava concertos, quando se dava atenção à música dele, ficava contente. Ligava-me a contar. Tenho pilhas de cartas dele e, nelas, ele conta-me do que vai fazendo e era uma maneira de mostrar o seu orgulho. Mas se não tivesse atenção, se não corresse bem, estava tudo bem para ele na mesma, e ele continuava. Ele queria era fazer música. E queria que se ouvisse a música.
Ele tinha consciência que a música é que era importante e penso que sentia uma grande tranquilidade. No Livro dos Sons há esta peça, a número 12, em que, de repente, parece que tudo fica bem. Todas as provas e tribulações do mundo acabam e sobe-se para o céu. É assim que vejo essa peça. Tem também a ver com a ideia budista de aceitação do momento. É isso a peça número 12. E é isso o meu pai. Ele tinha essa tranquilidade. Porque, para ele, desde que pudesse compor, estava tudo bem.
2. Os pianos
A história que eu conheço é que quem começou primeiro a aprender piano foi a irmã do meu pai. Ela era um pouco mais velha do que ele mas parece que o meu pai, com quatro ou cinco anos, tomou conta do piano... No início, foi a minha avó que o ensinou a tocar mas depressa percebeu que ele tinha tanto potencial que precisava de um professor profissional.Recentemente, estive a ver uma série de fotos antigas de família e encontrei uma dele e da irmã. Estão os dois, de costas, sentados ao piano. Há uma certa tristeza nas pessoas que, tão pequenas, têm um dom assim. Acabam por não ter uma infância normal. Talvez por isso, ao longo da minha infância, ele nunca me pressionou a tocar. Dizia muitas vezes que as crianças deviam ter direito à sua infância. Eu interpretava isso como um sinal de que ele gostaria de ter tido uma infância com mais brincadeira, apesar de, depois, a música se ter tornado a vida dele.
Aos 11 anos, eu decidi que queria tocar piano. Não é muito boa ideia tocar o instrumento do nosso pai, que foi uma criança-prodígio, mas ele apoiou-me. Só que, rapidamente, percebi que a música não era a minha vida. Quando o meu pai começou a perder a vista, e já lhe custava muito ver as notas, deu-me o seu piano. Tenho-o aqui em casa. É uma pena que eu não toque bem e que mais ninguém na família toque.
Eu era miúda quando ele comprou este piano. Lembro-me que ele ficou mesmo feliz de ter um piano realmente bom em casa. Foi neste piano que ele compôs o Livro dos Sons. O meu pai fez muitas coisas diferentes [performance, rádio, programação]. E adorava arte. Às vezes, dizia: se pudesse escolher outra vez, seria um pintor. Dizia coisas assim. Mas por mais que se interessasse por muitas coisas diferentes, a sua essência era voltar ao piano.
Estou convencida que ele está aí algures, depois de ter reencarnado, sentado a um piano. Toda a família brinca com isto: ele não foi para o céu, ele foi imediatamente procurar um piano.
3. Subir ao palco
Eu estive na estreia de o Livro dos Sons e o que é estranho é que não me lembro de estar na audiência. Do que me lembro é dos nervos dele antes do concerto. Estava muito apreensivo. Não sabia como é que o Livro dos Sons ia ser recebido. Era tão diferente de tudo o que ele tinha feito antes.Faltavam uns 30 minutos para irmos para a sala de concertos, estávamos no quarto de hotel, e, de repente, a garrafa de after shave dele partiu-se. Estilhaçou-se em mil pedaços. O cheiro que ficou... E nós a dizermos: é um bom presságio, é um bom presságio. Depois, parece que assisti ao concerto ao lado do [compositor americano minimalista] Terry Riley, porque o Terry Riley assim o diz, mas realmente não me lembro de estar com o Terry Riley.
Apesar da ansiedade dele nesse dia, eu não estava verdadeiramente nervosa por ele. Eu já o tinha visto em palco muitas vezes. Ele não ficava nervoso. Ela ia para o palco e fazia o que tinha a fazer.
Na verdade, quando subia a um palco, era como se algo se modificasse nele. Era como se entrasse noutro mundo. Vi muitos concertos dele. E vi também muitos concertos que ele organizou em Bremen. Concertos em que as pessoas não paravam de apupar.
Agora, as pessoas dizem: "ah, uau, Terry Riley, John Cage, que maravilha", mas não era assim naqueles dias. Havia muita resistência do público alemão, naquela altura, a esse tipo de música. E era uma batalha para o meu pai. Estava sempre a lutar para conseguir financiamento. Ficou muito desiludido quando perdeu o financiamento para o festival de "pro musica antiqua" e "pro musica nova" [que dirigia em Bremen].
O único arrependimento que tenho é não ter visto o seu último concerto. O último que eu vi foi no Instituto Goethe de Nova Iorque, em que ele tocou o Livro dos Sons. Percebi que já era muito cansativo para ele estar em palco. Talvez nessa altura, ficasse um pouco nervosa por ele quando ele subia ao palco. Mas era por causa da idade. Felizmente, ele soube quando parar.
Deixou de fazer performances mas nunca parou de compor. E, quando estava mais velho, e já não era capaz de compor peças grandes, compunha peças pequenas. Todos as suas partituras originais estão na Academia das Artes em Berlim. Ainda no outro dia estive a vê-las e reparei numas pequenas peças que ele compôs para os meus gatos. Tudo servia de pretexto para continuar a compor. Estava dentro dele essa necessidade de criar.
4. Descobrir os Sons
Uma vez, o meu pai explicou-me a arte contemporânea. Estávamos num museu, era eu ainda muito pequena, e olhei para uma pintura moderna - nem me lembro qual - e disse: não percebo. E ele disse-me: imagina uma casa com muitos quartos. Toda a gente conhece estes quartos. E, depois, vem uma pessoa e abre uma porta que ninguém sabia que estava lá. Isso é boa arte moderna. Depois, mais tarde, disse-me o mesmo quando eu tinha que ouvir John Cage e não queria. Eu era ainda criança e queria ouvir os Abba ou os The Beatles como qualquer miúda. São essas pessoas - como John Cage - que nos levam um passo à frente. São elas que nos mostram um quarto que nem sabíamos que existia.Acho que o meu pai também estava a tentar abrir uma porta com o Livro dos Sons. Até hoje, quando ouço alguém tocar o Livro dos Sons, consigo dizer se se enganou numa nota. Essa composição é como a minha genética. É uma música que passou a fazer parte do meu ADN. Durante uns quatro anos, todos os dias, ouvia o Livro dos Sons. Foi uma altura em que passava muito tempo só com o meu pai, porque a minha mãe viajava frequentemente para o Japão - para perseguir o seu interesse pelo budismo - e esta música estava sempre lá. Eu era adolescente, chegava a casa da escola e ouvia o Livro dos Sons.
É uma peça maravilhosa. Mas, claro, se uma pessoa a ouve todos os dias, às tantas quer ouvir outra coisa. Quando o meu pai era jovem tinha trabalhado num bar, para ganhar dinheiro. Tinha um repertório de canções de musicais dessa altura, e eu então pedia-lhe para ele tocar essas canções. Até ao fim da vida dele, de vez em quando, pedia-lhe para ele tocar uma daquelas canções. Mais tarde, quando o meu pai compôs o Livro das Horas, eu já não vivia com ele, mas o Livro dos Sons, ouvi-o tanto que passou a fazer parte de mim.
A primeira vez que vi o Livro dos Sons tocado por outra pessoa foi há dois ou três anos, em Berlim. O pianista Ivan Ilitic tocou uma ou duas peças da obra. Fiquei emocionada, porque, para mim, o meu pai e essa composição estão absolutamente interligados. Por mais que ache o trabalho de outros pianistas excelente, não consigo deixar de ouvir a primeira gravação do meu pai. De reparar que estão a tocar mais rápido ou mais lento. Mas é claro que os pianistas têm que dar a sua interpretação. Não seria horrível se tocassem exactamente como no CD? A gravação original já a temos e ninguém a pode tirar. Ter outras interpretações é a única forma de fazer a peça crescer.
Quando vi a Joana Gama tocar achei-a brilhante. O que pensei foi que ela estava a tocar no momento. E é assim que tem que ser. No caso de o Livro dos Sons, o mais importante é o tipo de "mindset" com que se toca. Não é uma peça que se pratique antes e fique resolvida assim. Tem que se explorar cada nota, cada som. É uma peça que pede para ser descoberta mesmo em palco. O pianista tem a oportunidade de descobrir, em palco, aqueles sons - também nele próprio.
Para se ser um pintor que faz um trabalho completamente transgressor, primeiro é preciso saber desenhar. É preciso dominar realmente o seu métier. E é preciso saber que é na simplicidade que está verdadeiramente a beleza. O que o meu pai criou tinha essa qualidade. No Livro dos Sons ele faz um regresso mais tonal depois de ter estado num território tão atonal. Era como se completasse um círculo.
Ele contou-me uma vez - e é a primeira vez que comento isso - que o Paul Hindemith, que foi seu professor nos anos 1950, lhe dizia: "Otte, estás perdido". Talvez o Livro dos Sons fosse a sua maneira de se reencontrar. Nessa época, o meu pai tinha sido diagnosticado com cancro. De maneira que quando ele estreou o Livro dos Sons, em Metz [em 1982], alguém escreveu que talvez fosse o seu "canto do cisne". Lembro-me de perguntar à minha mãe o que queria dizer essa expressão e de ficar chocada porque é que alguém acharia que seria a sua última peça.
É claro que a História provou que estava errado e ele viveu mais uns 25 anos, mas tudo mudou nessa altura. Foi a partir daí que ele se concentrou na composição.
5. Primeiras Imagens
Quando se cresce com um pianista em casa, há sempre barulho. O piano está sempre a soar. Às vezes, demasiado alto e a casa é pequena. A mãe pede para parar com o barulho. Nós não ficávamos todos quietos cada vez que o pai tocava, a ouvi-lo. Muitas vezes queríamos mesmo era que ele parasse de tocar. Mas, quando nos sentávamos na sala e começávamos a ouvir música - podia ser, simplesmente, Mozart - era incrível a maneira como ele ficava a escutar. Era completamente diferente das outras pessoas.Lembro-me que a uma dada altura eu ouvia muito funk. Punha a música de que gostava, às vezes até como piada, coisas como Prince, e ele ficava a ouvir com a mesma concentração. Talvez isto soe estranho, mas, na verdade, o que me ensinou mais não foi vê-lo tocar: foi vê-lo a ouvir música. Mas não falávamos muito sobre música. Até falávamos mais sobre outras artes. E, de qualquer maneira, o meu pai não era de falar muito.
Não sei se por isso, a fotografia tornou-se um meio de comunicação entre nós. Fotografar é um processo muito íntimo e, muitas vezes, quando nos encontrávamos, era o que fazíamos: fotografia. Lembro-me de ver o meu pai fotografar durante toda a minha infância. Ele tinha uma Rolleiflex e, quando eu tinha 12 ou 13 anos, fizemos uma aposta: numa viagem, se eu fotografasse melhor do que ele, a Rolleiflex passava a ser minha. Não sei como é que ele fez, e se estava só a ser generoso, mas o que é facto é que foi assim que consegui a minha primeira câmara fotográfica.
Eu ainda mal tinha aprendido a revelar fotografias quando ele me pediu que fotografasse para o primeiro CD do Livro dos Sons. Claro que fiz um péssimo trabalho. E, durante a escola de fotografia, fiz imagens promocionais para ele, mas eram ainda fotografias muito clássicas, daquele género com ele sentado ao piano.
Depois, em 1989, mudei-me para Nova Iorque e o meu pai vinha visitar-me muitas vezes. Nessa época, eu andava a fazer muitas experiências com fotografia de retrato. O mercado em Nova Iorque é muito competitivo e uma pessoa precisa de se especializar e ter alguns truques para conseguir entrar no mercado. Numa dessas visitas, o meu pai viu as minhas experiências, e disse-me: vamos fazer uma sessão.
Eu vivia num apartamento mínimo mas convertemo-lo num estúdio de fotografia. Não tinha muita coisa em casa, mas começámos a experimentar com o que havia: espelhos e outros objectos que tinha por ali. Por acaso, tinha encontrado, numa viagem pouco antes disso, umas grandes letras de um cinema antigo. Uma delas era um O. Quando ele viu aquele O agarrou logo nele. Porque é a primeira letra de Otte e também é o zero. Havia aí todo um conceito. E, de resto, foi divertirmo-nos. Não pensei muito sobre o que estava a fazer. Simplesmente, estava a divertir-me e a tirar umas fotografias ao meu pai, que seriam boas para o meu portfolio. Mas a intimidade - e a alegria - que sentíamos quando partilhávamos este tipo de momentos era muito bonita e sempre foi especial para mim.
6. Os amigos
A fotografia do meu pai e do John Cage [que é ponto de partida da peça J-CHOES, parte do festival Hans Otte : Sound of Sounds] tem uma história engraçada. Estavam quase 40ºC naquele apartamento, naquele momento. Estava um Maio excepcionalmente quente.O meu pai estava comigo em Nova Iorque e uns amigos - o casal Duckworth - convidaram-nos para uma soirée com o John Cage. Esse foi o verão em que o Cage morreu. Ouvi dizer que ele quis ver todos os amigos, mas não sei se é verdade. Eu e o meu pai apanhámos o Cage num carro alugado. Eu tenho uns 24 anos e lá vou eu a conduzir, com o John Cage no carro, que só dizia, enquanto atravessávamos o túnel Lincoln, que túnel tão bonito, que bonito. Para mim, tudo aquilo me parecia surreal. Eu estava tão deslumbrada que, chegando lá, nem consegui fotografar. Não queria perturbar aquilo que estava a acontecer entre eles. Estou muito agradecida à Nora [Farell, mulher do compositor William Duckworth] por ter tido a presença de espírito de tirar uma foto dos dois. Eu estava mesmo ao lado deles.
O meu pai tinha uma grande admiração pelo John Cage. Também me lembro de uma vez que o Cage estava em Bremen, para uma performance, e também lá estava a viúva do [Marcel] Duchamp, e eles os dois estavam a jogar xadrez. E o meu pai disse-me: olha bem, olha agora, nunca mais te vais esquecer disto. E nunca me esqueci: a Teeny Duchamp e o John Cage a jogarem xadrez. Não tinha a ver com a música. É que eram pessoas especiais.
São estas pequenas coisas de que me lembro, no meio da minha infância, com os meus amigos e as coisas normais de criança. Hans Otte era o meu pai. Uma pessoa tem os amigos, namorado, tem a sua vida, e não está a pensar: ah, o meu pai é pianista, compositor, uau. Eu queria viver a minha vida, mas muitas coisas como estas ficaram comigo.
Pensando nisso agora, também percebo que uma das coisas que mais me marcou foi ver o quanto o meu pai apreciava a arte de outros. E a generosidade com que ele abria portas a tantas pessoas, num mundo - a Alemanha dos anos 70 - que não era tão inclusivo e aberto.
O meu pai não tinha muito ego. Não estou a dizer que era um santo. Mas a verdade é que ele só queria criar, compor. Tudo o resto não lhe interessava muito. Acho que a fama só lhe interessava enquanto algo que pudesse ajudá-lo a conquistar o que queria, facilitar o trabalho.
Nem estava muito interessado na posteridade. Depois da morte dele, percebemos que ele não tinha nada organizado, não tinha arrumado as suas partituras. Não tinha pensado nisso. Não estava preocupado em organizar. Estava preocupado em fazer. Interessava-lhe o momento e fazer música. Penso que, afinal, ele compunha para ele próprio. Ficaria feliz de ver a obra do meu pai mais tocada, sim, mas sei que já chega a muitas pessoas e as emociona. E talvez ainda não seja o seu tempo.
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