Imagens e preconceitos  Qual a aparência de uma pessoa normal?

O que constitui um rosto “normal”? Normalizi.ng é um projeto experimental online que utiliza o aprendizado de máquina para analisar e entender como decidimos quem parece mais normal.
O que constitui um rosto “normal”? Normalizi.ng é um projeto experimental online que utiliza o aprendizado de máquina para analisar e entender como decidimos quem parece mais normal. Foto (detalhe): © Normalizi.ng

O que é normal? E o que constitui um rosto normal? Nossos cérebros estão constantemente analisando e classificando cada rosto que encontramos, e nós, como pessoas, não estamos sozinhos nisso. Todo um campo da ciência e da tecnologia analisa esses processos cognitivos inconscientes e os divide em normalidades estatísticas. Por meio do aprendizado de máquina, o reconhecimento facial está sendo usado para categorizar e prever o comportamento humano.

O retrato falante

Paris mudou drasticamente durante o século 19, quando a Revolução Industrial atraiu moradores de vilarejos que queriam tentar a sorte na cidade grande, iniciando uma tendência de urbanização que continua até hoje. Pela primeira vez em suas vidas, tanto os parisienses nativos quanto os novatos na vizinhança se viam todos os dias cercados por rostos novos e desconhecidos. Essas mudanças demográficas, juntamente com a crescente divisão entre a burguesia industrial e a classe operária, lentamente fissuraram o tecido social da cidade. A crescente divisão entre os moradores agravou a ansiedade nas ruas e contribuiu para um aumento na criminalidade.

Se você não nos disser quem você é, seu retrato dirá: a invenção da foto de fichamento tornou muito mais fácil identificar criminosos. Se você não nos disser quem você é, seu retrato dirá: a invenção da foto de fichamento tornou muito mais fácil identificar criminosos. | Foto: Tableau Synoptic des Traits Physionomiques: © pour servir a l'étude du “Porträt Parlé” [Quadro sinótico dos traços fisionômicos © para servir ao estudo do “retrato falado”], de Alphonse Bertillon (1909) / domínio público Em tempos antigos, um policial normalmente saberia quem ele estava prendendo, onde morava o infrator e o que sua mãe teria a dizer quando soubesse das travessuras de seu filho. Mas o influxo de novos rostos mudou isso. As delegacias de polícia começaram a usar a tecnologia emergente da fotografia para documentar as detenções, mas elas começaram a se acumular em montanhas inutilizáveis e incontroláveis de imagens. O jovem oficial parisiense Alphonse Bertillon decidiu trazer ordem ao caos. Ele começou a padronizar a fotografia policial, tirando um retrato frontal e um retrato lateral e arquivando-os em uma ficha padrão de detenção. Em outras palavras, ele inventou a mugshot, a foto de fichamento, que ainda vemos hoje como a imagem icônica da criminalidade. Ele passou a medir, quantificar e classificar o corpo, aumentando as fichas de detenção com dados de identificação adicionais específicos. Bertillon também criou um quadro sinótico que chamou de “Le Portrait Parlé”, o retrato falado: isso significava que mesmo quando a pessoa detida se recusasse a revelar sua identidade, seu retrato o faria. A tabela classificava diferentes tipos de narizes, bocas, olhos, ouvidos e outras características faciais e os categorizava sistematicamente.

Para Bertillon, isso nada mais era que um sistema de indexação para auxiliar na identificação. E, de fato, o “Bertillonage” se espalhou rapidamente pela Europa e pelos EUA como a melhor prática científica de ponta para a identificação policial por meio da fotografia. Mas, apenas alguns anos depois, para a decepção de Bertillon, ele foi substituído pela impressão digital, que provou ser uma tecnologia de identificação muito mais simples e precisa.

O que é normal?

O estudo da impressão digital foi uma das muitas contribuições científicas de Sir Francis Galton, um prolífico intelectual britânico e pioneiro da estatística. Outra das principais descobertas científicas de Galton foi a da normalidade estatística ou distribuição normal. Ele observou que aquilo que pode parecer um conjunto de fenômenos aleatórios muitas vezes revela um padrão de probabilidade distribuído em torno de um pico curvo em forma de sino – “a curva do sino”. Esses fenômenos em geral se aglutinam mais perto do pico da curva do sino do que das bordas.

Reprodução do Tabuleiro de Galton: A distribuição dos feijões caídos sempre repete a curva do sino. Reprodução do Tabuleiro de Galton: A distribuição dos feijões caídos sempre repete a curva do sino. | © CC BY-SA 4.0 Para demonstrar esse fenômeno estatístico bastante abstrato, Galton construiu um dispositivo peculiar que se assemelhava um pouco a uma máquina de flíper e o encheu de feijão. No topo do tabuleiro, os grãos eram canalizados para uma única saída no centro, de onde caíam em uma fileira de pinos. Os feijões saltavam em torno dos pinos em seu caminho para baixo e, finalmente, pousavam em fendas igualmente distribuídas ao longo da base do tabuleiro. Embora não haja como prever exatamente qual feijão cairia em cada fenda, a distribuição geral sempre repetia a forma da curva do sino, onde a fenda central continha mais grãos e aquelas à sua esquerda e à direita gradualmente coletavam menos grãos.

A quantificação da distribuição normal também permitiu a quantificação dos desvios padrão – o grau de dispersão pelas fendas. Um baixo grau de desvio padrão (DP) significava que as fendas estavam mais próximas da norma – o pico da curva. Um DP mais alto significava que estavam mais espalhadas e as anomalias eram mais prováveis de ocorrer.

Essa prática formulação matemática ajudou a normalidade estatística a se tornar muito mais do que um padrão científico. Galton desejava usar a lente da estatística para todos os aspectos da vida, e a normalidade rapidamente se expandiu para além do contexto das ciências naturais. Antes do trabalho de Galton no final do século 19, era muito pouco usual usar a palavra “normal” para descrever qualquer coisa fora do domínio das ciências naturais. Após as descobertas de Galton, o próprio conceito de normalidade se normalizou rapidamente e, através do trabalho de Émile Durkheim e outros sociólogos, passou a permear as ciências sociais e a cultura em geral.

Rosto normal ou rosto desviante?

Em 1893, Galton visitou o laboratório forense de Bertillon e se tornou um grande fã do Bertillonage. Ele não estava interessado no que as ferramentas e metodologias de Bertillon poderiam revelar sobre a responsabilidade dos indivíduos por crimes passados; Galton estava interessado em prever estatisticamente futuros desvios.

Fotografia e registro de Francis Galton (73 anos) feitos por Bertillon após a visita de Galton a seu laboratório em 1893. Fotografia e registro de Francis Galton (73 anos) feitos por Bertillon após a visita de Galton a seu laboratório em 1893. | Foto: © Wikipedia/gemeinfrei Como Bertillon, Galton se dedicou ao exame sistêmico do retrato fotografado. Inspirado por suas descobertas de normalidade estatística, Galton inventou a técnica do retrato composto. Nesse processo, diferentes sujeitos eram fotografados na mesma placa de filme em baixa exposição, produzindo assim uma única imagem mesclada. Ele criou retratos compostos de oficiais do Exército e engenheiros reais, bem como retratos compostos de criminosos e doentes mentais. Galton tentou identificar a aparência típica de pessoas normais e formas de identificar e por fim prever desvios do padrão social.

Galton examinava retratos de criminosos e de doentes mentais para descobrir que aparência típica tinham as pessoas normais. Galton examinava retratos de criminosos e de doentes mentais para descobrir que aparência típica tinham as pessoas normais. | Foto: © Frontispiece of Inquiries into Human Faculty and its Development [Frontispício de Inquéritos sobre a Faculdade Humana e seu Desenvolvimento], Francis Galton (1883) / domínio público Para Galton, a estatística era mais do que um esforço intelectual, pois ele acreditava no uso da normalidade estatística para criar uma sociedade melhor. Ele fundou o movimento eugenista, que procurava interpretar a evolução e a seleção natural (os avanços científicos do primo em segundo grau de Galton, Charles Darwin), em vez de uma análise da variabilidade na natureza, como uma receita para a criação de uma sociedade melhor. Eugenistas como Galton praticavam a fisiognomonia, a pseudociência de avaliar traços de personalidade com base na aparência física – o que é como julgar um livro pela capa. Eles usavam a datificação de Bertillon (dados de medição e registro) e sua classificação do corpo para também analisar, classificar e prever a contribuição potencial de uma pessoa para a sociedade, além de estimar antecipadamente seu impacto nas reservas genéticas de gerações futuras. Os eugenistas acreditavam que a natureza, e não a educação (ou Deus), era a principal definidora do destino humano. Portanto, argumentavam eles, a melhor maneira de promover a raça humana era manter a pureza da herança genética e impedir que os desviantes trouxessem crianças ao mundo. As políticas eugenistas avançaram em toda a Europa Ocidental e no Reino Unido, mas foram os estadunidenses os primeiros a aprovar leis de esterilização para impedir que pessoas com deficiência tivessem filhos.

O próprio Bertillon nunca quis que sua tecnologia fosse usada dessa maneira. Quando confrontado com as teorias científicas racistas do criminologista italiano Cesare Lombroso, seu contemporâneo, Bertillon disse: “Não me sinto convencido de que é a falta de simetria no rosto, ou o tamanho da órbita, ou a forma da mandíbula, que fazem de um homem um malfeitor”.

Bertillon argumentava que tinha visto uma distribuição muito ampla de rostos passar por seu laboratório forense. E que um defeito nos olhos, por exemplo, não indicava que a pessoa nasceu criminosa, mas que sua visão deficiente pode ter lhe deixado poucas alternativas no mercado de trabalho.

Bertillon traduzia o corpo em dados para identificação e estabelecimento de correlações com o comportamento passado, mas não para projetar e prever atos futuros. No entanto, a mesma datificação e classificação de comportamento e traços pessoais permitiram tanto a identificação forense quanto a previsão estatística. O racismo científico e a fisiognomonia passaram a moldar o século 20. Em seu livro Mein Kampf, Adolf Hitler refere-se aos eugenistas estadunidenses como uma importante fonte de inspiração para o que a Alemanha mais tarde desenvolveu na eugenia nazista. Os nazistas levaram essa filosofia e prática a um extremo atroz com os extermínios em massa e genocídio de judeus, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência e outros grupos marcados como desvios da imagem racista ariana normalizada. Após a derrota nazista na Segunda Guerra Mundial, as ideias de fisiognomonia e racismo científico receberam condenação internacional. Nos anos seguintes, elas permaneceram adormecidas sob a superfície, mas não evaporaram, pois estavam profundamente enraizadas na herança da normalidade estatística.

O retrato fala novamente

A análise facial apresentou um retorno dramático na segunda década do século 21, impulsionada pelos mais recentes avanços nas estatísticas aprimoradas por computador. Os “cientistas de dados” de hoje são os descendentes intelectuais diretos dos pioneiros da estatística e da datificação do século 19. Alguns deles se concentram na identificação, atualizando as tentativas de Bertillon de promover a identificação forense de indivíduos correlacionando dados com documentação passada. Outros, da mesma forma que Galton, se concentram na análise, tentando projetar estatisticamente o comportamento futuro com base em padrões do passado. Hoje, a identificação e a projeção são frequentemente usadas em conjunto na tentativa de explorar ao máximo a tecnologia. Por exemplo, em novembro de 2021, após pressão dos reguladores, o Facebook anunciou que deixaria de usar o reconhecimento facial para identificar usuários em imagens e disse que implementaria seu serviço “Automatic Alt Text”, que analisa imagens para gerar automaticamente uma descrição de conteúdo em forma de texto.

Os  centros de processamento de dados estão acumulando cada vez mais dados. Eles criam um retrato cada vez mais detalhado do nosso comportamento passado que alimenta as previsões algorítmicas do nosso comportamento futuro. Muito semelhante ao retrato composto de Galton, a imagem do comportamento normal é construída a partir de múltiplas amostras sobrepostas de diferentes sujeitos. Cada feixe de dados é canalizado através de caixas-pretas algorítmicas para encontrar seu caminho para as fendas normalmente distribuídas ao longo da curva de sino do comportamento normalizado futuro. A normalização através de dados torna-se uma profecia autorrealizável. Ela não só prevê o futuro, como dita o futuro. Quando o caminho previsto é a aposta mais segura, apostar no desvio torna-se um risco financeiro, cultural e, por vezes, político. É assim que as previsões baseadas em dados normalizam o passado e impedem mudanças. Os algoritmos de aprendizado de máquina são, portanto, conservadores por natureza, pois só podem prever como os padrões do passado se repetirão. Eles não podem prever como esses padrões poderiam evoluir.

O discurso sobre privacidade online ainda permeia a discussão sobre o direito de uma pessoa  manter a privacidade sobre suas atividades passadas. Mas os aparatos de vigilância algorítmica atuais não estão necessariamente interessados em nossas atividades passadas individuais. Eles estão interessados na imagem revelada por nossos retratos compostos – aquela que define o caminho da normalidade e pinta os desvios da norma como suspeitos.

Online Normalizi.ng

De forma semelhante às máquinas, também estamos, como pessoas, constantemente categorizando os rostos dos outros. Capturamos, classificamos e analisamos as características fisionômicas uns dos outros. Mas estamos conscientes de nossos preconceitos diários, da maneira como definimos constantemente o que é normal e o que não é? Como categorizamos as pessoas e como somos categorizados? É disso que trata o Normalizi.ng., um projeto experimental de pesquisa online que usa o aprendizado de máquina para analisar e entender como decidimos quem parece mais “normal”.

Os participantes da experiência online Normalizi.ng passam por três etapas que são usuais tanto nas estatísticas iniciais quanto nas contemporâneas. No primeiro passo – capturar–, são incentivados a inserir seus rostos em uma moldura e capturar uma selfie. Na segunda etapa – classificar –, são apresentados a uma série de participantes previamente registrados. Em seguida eles deslizam para a direita e para a esquerda para classificar quais narizes, bocas, olhos e rostos parecem mais “normais”. Na terceira etapa – analisar –, o algoritmo analisa seus rostos e seus deslizes de normalização. Ele os arquiva em uma ficha de detenção inspirada no Bertillonage com pontuação de normalização dinâmica e, em seguida, adiciona seus rostos a um mapa algorítmico de normalidade inspirado no portrait parlé. O mapa de Normalizi.ng O mapa de Normalizi.ng | The Normalizi.ng Map O mapa usa um algoritmo de análise para agrupar rostos com características semelhantes em uma grade bidimensional. Quanto maior a pontuação de normalidade, mais grossa a moldura do retrato. A cada hora, à medida que mais participantes se juntam, o algoritmo atualiza e redesenha o mapa. No entanto, em todos os mapas, os dois principais agrupamentos são sempre claramente identificados como masculino e feminino. Outros agrupamentos são formados nas margens: um agrupamento de pele escura, muitas vezes unificado para homens e mulheres, um agrupamento asiático, às vezes em transição gradual para um “latinx”. Um agrupamento de crianças, um de idosos, um de barbas... Curiosamente, os rostos mascarados em função da pandemia são distribuídos uniformemente por todo o mapa. Enquanto os mapas algorítmicos são constantemente redesenhados, eles repetem e amplificam as divisões da classificação facial. E visualizam como a discriminação sistemática de hoje nas sociedades ao redor do mundo – contra pessoas de certos gêneros, cores de pele, idades ou estilos de cabelo – é agregada, amplificada e convenientemente escondida por trás da caixa-preta aparentemente objetiva da inteligência artificial.

Rostos não familiares são uma parte importante do que torna Paris e tantas outras grandes cidades tão emocionantes, tão cheias de possibilidades. Paris nunca mais será uma pequena cidade homogênea. Nem a internet. O algoritmo é o policial que vê você apenas através do seu estereótipo, sem nunca realmente conhecer você como pessoa, sem nunca falar com sua mãe. Vamos parar e nos perguntar: isso é algo que queremos sistematizar? Automatizar? Amplificar? E, de qualquer forma, a normalidade é mesmo algo que deveríamos estar policiando?

Do painel (Mis)Reading Human Emotions – com Mushon Zer-Aviv – no festival Wenn Maschinen Zukunft träumen

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