Escassez de mão de obra  E se houver empregos demais?

Mulher em um terno de calça com uma pasta em uma roda de hamster
Na roda hamster © Shutterstock

Para compreender o fenômeno pós-pandêmico de escassez de mão de obra, pode-se questionar o paradeiro dos trabalhadores em falta. Essa pergunta, no entanto, também pode ser feita de outra maneira.

Toda pessoa que acompanha um pouco o noticiário já deve ter visto que os representantes dos empregadores, economistas ortodoxos e outros amantes do capitalismo tendem a retratar fenômenos econômicos específicos como desastres naturais que podem atingir toda a sociedade: “Sem aumento da produtividade, o país ficará mais pobre”, “Falta de investimento em inovação prejudicará o crescimento”, “O envelhecimento da população afetará a capacidade de competição da nossa empresa”... Todas essas afirmações são avisos muitas vezes apresentados sem explicação. Há alguns anos, a escassez de mão de obra está na lista de cataclismos que parecem ameaçar a estrutura de nossa sociedade.

Mas, a que eles realmente se referem, quando citam a “escassez de mão de obra”? Quais são suas causas? A quem ela afeta? Ao tentar responder a essas perguntas, logo fica claro que, por trás da escassez de mão de obra, reside uma tragédia diferente daquela que a maioria dos políticos e economistas hegemônicos menciona quando reclama em público do crescente número de vagas não preenchidas. Primeiro, precisamos separar os fatos científicos dos mitos que os cercam.

A suposta escassez de mão de obra

Em primeiro lugar, só se deve falar em “escassez” quando se trata de cargos especializados para os quais não há disponibilidade suficiente de trabalhadores qualificados. Como você não pode formar um juiz, um cientista da computação ou um engenheiro em seis meses, uma verdadeira escassez de mão de obra ocorreria quando as organizações deixassem de recrutar profissionais dessas áreas por um longo período. E deve-se enfatizar que esse período teria que ser realmente longo.

O que se tem observado nos últimos anos no Quebec e no Canadá é um aumento no número de vagas abertas para empregos que normalmente exigem pouca ou nenhuma habilidade ou experiência e que também são mal remunerados. Garçonete, pessoal de limpeza, empacotadores, vendedores de varejo etc. Esses são os cargos que compõem grande parte da suposta escassez. Portanto, nesses casos, não se deve falar em falta de mão de obra, já que há na população pessoas que possuem as habilidades necessárias para exercer essas funções. Ao contrário, isso poderia ser formulado de outra maneira, como por exemplo dizer que as empresas têm dificuldades em recrutar e reter pessoal.

Se os trabalhadores podem se dar ao luxo de recusar esses empregos, é porque a economia está indo bem e o desemprego se encontra em um nível historicamente baixo. Além disso, o envelhecimento da população – que traz a reboque o aumento do número de aposentados –, assim como o declínio do movimento de migração [no Canadá – nota da redação], que traz pessoas que em média são mais jovens que as nascidas no país, estão afetando a curva demográfica e a força de trabalho disponível. Isso faz com que trabalhadores de setores como hotelaria, gastronomia ou varejo, que oferecem condições precárias de trabalho, mudem de carreira, fenômeno conhecido nos Estados Unidos como a Grande Demissão. Há quem mude de perspectiva e fale em escassez de bons empregos para descrever o cenário atual no mercado de trabalho. No entanto, isso não significa que todos esses empregos não sejam úteis para a sociedade, muito pelo contrário. Mas chegaremos a isso mais tarde.

Há quem defenda que esse “desequilíbrio” entre força de trabalho e vagas de emprego não preenchidas é uma coisa boa, pois desloca o equilíbrio de forças em favor dos trabalhadores. Até o primeiro-ministro do Quebec, François Legault, normalmente um conservador, declarou em maio de 2022 que a situação era uma “excelente notícia” para o país (“une mosusse de bonne nouvelle pour le Quebec”), pois deveria gerar uma pressão de alta sobre os salários. Isso é verdade, e em tempos de maior desemprego ocorre justamente o contrário: quando há excesso de oferta de mão de obra, os empregadores não têm interesse em oferecer melhores condições de trabalho.

Então, a “escassez” de mão de obra é boa? Para concordar com isso, teríamos que ignorar o fato de que o problema sempre recorrente de recrutamento e retenção de pessoal também afeta profissões muito importantes para a sociedade como, por exemplo, professores, assistentes sociais, cuidadores, escrivães, terapeutas, educadores de creches, funcionários dos serviços municipais etc. Nesses casos é possível falar em catástrofe, pois o que está em jogo não são os lucros, mas as vidas: as vidas dos idosos, dos doentes, das crianças com necessidades especiais e, claro, daqueles (especialmente daquelas) cuja função é “cuidar” deles, quase sempre sem pensar em suas condições de trabalho. Horas extras, jornadas irregulares, sobrecarga psicológica e altas exigências físicas... É comum que essas profissões sejam exercidas em condições extremas e não recebam o reconhecimento social que merecem.

“Empregos sem sentido”

A solução para muitas empresas é contratar trabalhadores cada vez mais jovens para empregos não qualificados. Por outro lado, no extremo oposto, a discussão sobre o retorno dos aposentados à vida laboral ganha cada vez mais popularidade. A importância da aposentadoria ou os maiores riscos à saúde e a segurança apresentados por determinados trabalhos quando seus ocupantes são jovens e inexperientes não passam pela cabeça das fileiras de empregadores e dos ideólogos de direita.

Outra proposta sugere que adaptemos o mundo do trabalho às exigências dos jovens e a seus valores e aspirações, que são diferentes daqueles dos seus pais, os baby boomers [nascidos entre 1945 e 1964] e da Geração X. Poderíamos também oferecer mais flexibilidade, para facilitar o retorno dos aposentados ao trabalho... Mas quando você se concentra no que é problemático para os trabalhadores (por exemplo, sua ética de trabalho ou seu estado de saúde), é fácil ignorar que parte do problema está na suposição de que absolutamente todos os empregos devem ser preenchidos. Os defensores do chamado livre mercado não querem admitir, mas as sociedades capitalistas geram, junto com uma infinidade de empregos nocivos, uma série de empregos inúteis. Essa tese foi apresentada pelo falecido antropólogo americano David Graeber em seu artigo de 2013 On the Phenomenon of Bullshit Jobs (Sobre o fenômeno dos empregos sem sentido). Não se trata dos já mencionados empregos “ruins”, não qualificados – embora alguns deles se encaixem na classificação –, mas de empregos cuja utilidade social é nula, ou que não têm utilidade para a própria empresa, ou que, apesar da alta remuneração, não dão qualquer contribuição positiva para a sociedade. É certo que os trabalhadores nem sempre são intercambiáveis. No entanto, em tese, pode-se dizer que aqueles que exercem esses trabalhos inúteis não estão disponíveis para desempenhar trabalhos mais nobres e, portanto, de um ponto de vista puramente pessoal, mais satisfatórios. Essas tarefas mais nobres são trabalhos importantes, nos quais a falta de pessoal é sentida de forma mais dolorosa.

Além disso, a atividade econômica capitalista prejudica a saúde dos trabalhadores, da população em geral e do meio ambiente. Muitas empresas poluem o ar, empobrecem os solos e os pratos e enfraquecem as relações interpessoais, levando a dores generalizadas no coração, no estômago e na cabeça. Em suma, as sociedades capitalistas geram problemas que não conseguem mais resolver. Os desafios enfrentados pelos profissionais dos cuidados talvez espelhem a trágica outra face da moeda desse emprego parasitário e da importância atribuída a ele... e isso revela os valores distorcidos do capitalismo.

O que é um problema aos olhos da razão capitalista não é necessariamente um problema para todos.

Se tivermos que nos preocupar com a possibilidade de que os funcionários do setor público, que estão com falta de reforços, entrem em colapso, ou que os donos de pequenas empresas desmoronem sob o peso de suas semanas de 60 horas, é pouco relevante saber que a Amazon ou o Royal Bank têm previsões de lucro decepcionantes devido à dificuldade em recrutar mão de obra. O que é um problema aos olhos da razão capitalista não é necessariamente um problema para todos. Haverá quem diga, pelo contrário, que estaríamos melhor se essas empresas, com a sua concorrência desleal frente ao comércio local e os seus instrumentos financeiros tóxicos, decidissem reduzir as suas atividades. Alguns dos problemas de mão de obra seriam resolvidos de imediato se elas simplesmente eliminassem algumas dessas posições abertas.

Essa perspectiva é um ponto de partida interessante para abordar a difícil pergunta do como: como nos livrarmos desses empregos supérfluos? Obviamente, alguns cargos poderiam ser abolidos sem afetar nossas necessidades básicas. Desse ponto de vista essa redução parece muito realista, mas ela é difícil de implementar, ao menos sem que a elite econômica use suas armas (se necessário, ideológicas, financeiras etc.). Damos como certo que haveria muitas dificuldades que complicariam a implementação de tal programa.

No entanto, já ocorreram no passado reconfigurações de empresas para atender necessidades urgentes, como, por exemplo, no esforço para produzir mais equipamentos de proteção sanitária no início da pandemia de Covid-19. O mesmo aconteceu no começo e no fim da Segunda Guerra Mundial, quando as indústrias foram transformadas para atender necessidades consideradas mais urgentes na época. O que é considerado impensável pode tornar-se óbvio em circunstâncias extraordinárias. No entanto, a forma dominante das empresas no capitalismo também dificulta a concretização dessas reconfigurações. A maioria das empresas privadas com fins lucrativos são organizações autoritárias em que a tomada de decisões está concentrada nas mãos de uma administração que tem como função manter a lucratividade da empresa. Para reconfigurar a economia, seria necessário criar organizações baseadas em princípios democráticos, nas quais os trabalhadores tivessem voz na definição das metas de seu trabalho e das condições em que ele é praticado.

Nos hospitais, nas escolas, nos jardins de infância e nos campos do Quebec, e em muitos outros países onde a lógica do capital impera, a escassez de mão de obra não passa despercebida. Por toda parte ocorrem dramas que seria insensato ignorar. Por essa razão, e muitas outras, uma das tarefas mais importantes do nosso tempo é colocar a economia a serviço de uma vida boa para todos, e não da busca irracional de um crescimento infinito destinado a poucos.

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