Bens culturais  Lentidão na restituição de artefatos coloniais

 © Erika Torres, 2019

A quem pertencem? A reivindicação da propriedade de bens culturais oriundos do período colonial é frequentemente motivo de controvérsia. As negociações para uma possível devolução são quase sempre penosas e demoradas. A Alemanha começa a dar os primeiros passos neste sentido.

Colocada pelos colonizadores portugueses para proclamar seu direito de propriedade sobre o Cabo Cruz, na África meridional, a coluna com 3,5 metros de altura e bons 530 anos de idade, é coroada por uma cruz de calcário. De acordo com o brasão português, ela foi erguida pela primeira vez em 1485 e permaneceu na África até 1893, quando colonizadores alemães que tomaram o território trouxeram esse bem cultural para Berlim. Agora seu retorno está muito próximo: a Alemanha vai devolver a cruz de pedra do Cabo Cruz para a Namíbia. “Essa é uma decisão importante e que aponta para o futuro”, afirmou a ministra alemã da Cultura, Monika Grütters.  

Até o momento, entretanto, a devolução é mais a exceção do que a regra na Alemanha. Espetacular neste contexto, contudo, foi a decisão do estado de Baden-Württemberg, que determinou no início de 2019 a devolução ao governo da Namíbia da bíblia e do chicote de seu herói nacional Hendrik Witbooi. Fora isso, a devolução tem se limitado a restos humanos, como por exemplo das caveiras de nativos australianos, e artefatos fúnebres provenientes de países africanos. A coalizão que governa o país, formada por social-democratas e conservadores, havia assumido, contudo, o compromisso de passar a limpo seu passado colonial – uma posição que foi inclusive registrada no programa de governo. A lembrança dos crimes cometidos durante esse período deveria, de acordo com o referido programa, fazer parte da cultura nacional da lembrança.
 
O herói nacional da Namíbia Hendrik Witbooi provavelmente nunca sonhou que seu chicote e sua bíblia se tornariam um dia objeto de controvérsia internacional. O herói nacional da Namíbia Hendrik Witbooi provavelmente nunca sonhou que seu chicote e sua bíblia se tornariam um dia objeto de controvérsia internacional. | Foto (detalhe): © picture-alliance/dpa

DEBATE ESCASSO SOBRE O PASSADO COLONIAL

Até o momento, praticamente não aconteceu na Alemanha uma elaboração mais intensa da era imperial entre fins do século 19 e início do século 20. Só nos últimos anos é que cresceu a consciência a respeito dos crimes cometidos nesse período, também em função do debate sobre o genocídio perpetrado por tropas coloniais alemãs contra os grupos étnicos Nama e Herero. O governo alemão está agora buscando uma reconciliação com a antiga colônia, o que inclui a restituição de bens culturais roubados. 

Museus alemães abrigam milhares de artefatos do mundo todo. O número exato é desconhecido, e da mesma forma não se sabe se esses objetos foram adquiridos legalmente. Entre eles estão peças espetaculares, como o busto da rainha egípcia Nefertiti, cuja devolução foi reivindicada sem sucesso pelo Egito. Também há, no Museu de História Natural de Berlim, um esqueleto de dinossauro com 13 metros de comprimento, cuja ossada foi encontrada e removida da Tanzânia por cientistas alemães.

PRIMEIRO DE TUDO PESQUISAR A PROCEDÊNCIA

Batalha contínua pela devolução: quem é o verdadeiro proprietário do busto de Nefertit

Batalha contínua pela devolução: quem é o verdadeiro proprietário do busto de Nefertit | Foto (detalhe): © picture alliance / Eventpress Herrmann

Os guardiões desses tesouros não gostam muito da ideia de abrir mão de achados tão significativos. Em 2019, no entanto, o governo federal e os governos estaduais concordaram em alguns pontos-chave quanto à forma de lidar com a questão. Sua declaração conjunta diz: “Queremos criar condições para a repatriação de restos humanos e de bens culturais obtidos em um contexto colonial, cuja apropriação não é mais justificável nos dias de hoje sob os pontos de vista legal e ético”. Na prática, a ministra Grütters fortaleceu a pesquisa sobre a proveniência dos artefatos, ou seja, a investigação acerca da origem e das circunstâncias de aquisição de bens culturais.

Essa decisão desencadeou, porém, críticas severas. O historiador Jürgen Zimmerer, de Hamburgo, vê o foco na procedência como uma estratégia para adiar decisões políticas necessárias. Ele teme que isso promova a “amnésia colonial” no lugar de impulsionar a forçosa discussão. “Lidar com a herança colonial europeia é um dos maiores, se não o maior debate identitário da nossa época,” escreve Zimmerer. E ele tem na manga uma proposta alternativa à pesquisa de proveniência, sugerindo uma reversão do ônus da prova, ou seja: as coleções coloniais teriam que provar que os itens sob sua posse foram adquiridos legalmente. Caso contrário, essas peças seriam automaticamente consideradas como resultados de saques.

A FRANÇA COMO EXEMPLO?

O governo alemão também encontra-se sob pressão por causa do presidente francês Emmanuel Macron, que pretende chegar a um acordo com países africanos no que diz respeito à devolução de bens coloniais que estão hoje na França. Neste sentido, Macron foi influenciado pelo trabalho da historiadora da arte Bénédicte Savoy, que dá aulas na Universidade Técnica de Berlim, e do economista Felwine Sarr. Em um relatório encomendado pelo governo, ambos recomendam ao governo francês a restituição permanente de arte roubada. 

As reivindicações de Savoy ecoam também em Berlim. No centro da crítica está aqui especialmente o comportamento do Fórum Humboldt, cuja inauguração foi há pouco novamente adiada. O museu vai reunir em Berlim as coleções não europeias e asiáticas da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, com suas dezenas de milhares de peças de origem questionável, e instalar-se no reconstruído palácio imperial da cidade. Em 2017, Savoy deixou o conselho do Fórum em sinal de protesto: entre outras razões, devido à falta de transparência e à negligência na pesquisa da procedência.
 
O Fórum Humboldt foi concebido não apenas como um museu, mas também como lugar de encontro, troca e aprendizado. Em entrevista concedida já no ano de 2014 ao semanário Die Zeit, Klaus-Dieter Lehmann, presidente do Goethe-Institut e ex-presidente da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, confirmou a possibilidade de uma cooperação estreita com o Fórum na realização de programações e eventos agendados, sobretudo através da rede de especialistas do Goethe-Institut nos respectivos países anfitriões.

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