A arquiteta e urbanista Sônia Marques fala sobre possíveis influências da Bauhaus na arquitetura brasileira, tomando como ponto de partida obras realizadas pelo arquiteto Luiz Nunes, em Recife, na década de 1930.
É possível detectar alguma influência direta da Bauhaus na arquitetura latino-americana?A noção de influência é usada frequentemente para indicar, no caso de arquitetura, semelhanças visuais. É sempre perigoso atribuir influências diretas de qualquer escola ou movimento sobre outro. No entanto, é claro que se pode detectar influências em casos precisos, através de dados históricos, como as biografias que evidenciam que indivíduos participaram de uma experiência e de outra, por exemplo. No caso da Bauhaus e dos brasileiros, isso não se aplica. Mas acho que se deve considerar que a experiência da Bauhaus (1919-1933), embora singular e excepcional, foi parte de um movimento mais amplo de renovação de padrões estéticos. Ou seja, as ideias da Bauhaus existiam também alhures.
A difusão de ideias ou de cânones em arquitetura pode ser feita por vários meios: por uma imagem, uma publicação, intercâmbios, viagens. Um exemplo mais recente: em quantos lugares do mundo não encontramos a “influência” de Brasília em realizações de arquitetos que nunca estiveram na cidade brasileira? Sendo assim, não acho que se possa atribuir uma influência direta de movimentos e pessoas que participaram da Bauhaus sobre a arquitetura latino-americana, mas sim referências ubíquas e difusas. Tais referências manifestam-se na adoção dos cânones das artes plásticas, dos ismos e no experimentalismo construtivo. No caso da arquitetura brasileira moderna, esse experimentalismo baseou-se na plasticidade do concreto, pois era o material moderno do qual dispúnhamos. As experiências com os demais materiais, como os metálicos e as madeiras curvas tratadas, inexistiam na linguagem brasileira até pouco antes, dada nossa mão de obra extensiva e a pouca industrialização da construção civil.
Influenciadas diretamente ou não pela Bauhaus, as edificações modernistas brasileiras mostram uma audácia e um vanguardismo incrível quando comparadas ao panorama internacional. Eu destacaria quatro obras pioneiríssimas: o Pavilhão de Óbitos, de Luiz Nunes (1909-1937), em Recife; a Igreja da Pampulha, de Oscar Niemeyer (1907-2012); a Caixa d’Água de Olinda e a Escola Alberto Torres, em Recife, ambas também de Nunes.
As obras de Luiz Nunes, sobretudo em Recife, podem ser de alguma forma associadas à Bauhaus? Qual a importância de sua arquitetura para a cidade?
Nunes permanece um mistério, em muitos aspectos. Seus projetos e obras testemunham o vanguardismo de então do meio profissional recifense. A importância de suas construções é enorme e vai muito além das paragens recifenses. Quando estive à frente da direção do DOCOMOMO (Documentação e Conservação do Movimento Moderno) Brasil, fizemos um evento com a presença de Agnes Caillau, então presidente do DOCOMOMO France. Ela ficou pasma ao visitar o Pavilhão de Óbitos de Nunes: uma obra de 1937 e tudo estava lá! Quando o Pavilhão foi projetado, a Villa Savoye, de Le Corbusier, não tinha nem dez anos, tempo que para a difusão de arquitetura não é nada, e tinha repercutido menos na França.
Como se dá a atuação do poder público no Brasil em termos de preservação dessas construções?
O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) desde cedo preocupou-se com a preservação das obras modernistas, mas o instrumento de tombamento é limitado. Quando fizemos o primeiro evento do DOCOMOMO Brasil, em 2015, abrimos com uma mesa-redonda com jornalistas. Destaco, em particular, um vídeo chocante realizado pelo jornalista Júlio Cavani, que publicou uma matéria sobre uma bela residência modernista que restava na cidade, o que acabou desencadeando a demolição imediata da mesma, a pedido do proprietário, temendo que ela fosse tombada. Os próprios arquitetos, vorazes por novos projetos, são muitas vezes os que mais desclassificam edificações modernistas, ou da primeira Modernidade ainda eclética, como foi o caso do edifício Caiçara, em Boa Viagem (“são destituídos de valor”, para usar o jargão).
O Hospital da Brigada Militar e a Usina Higienizadora de Leite (1934-1935), também projetos de Nunes, com lajes planas, superfícies lisas e sem ornamentação, podem ser vistos como uma referência à Bauhaus?
Lajes planas, superfícies lisas e sem ornamentação vão ser encontradas em muitos lugares antes da Bauhaus e além da Bauhaus. Na Robie House (1906-1909), do arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright, as lajes planas dos terraços já eram impressionantes, tanto por sua técnica, como na condição de elemento compositivo. Em 1908, por exemplo, Adolf Loos escrevia Ornamento e crime, que é uma teoria sobre a relação entre arquitetura e decoração, entre meios construtivos e meios decorativos. O mesmo Loos, na mesma época, escreveu a teoria do Raumplan, que se relaciona com as lajes planas em cotas diferentes. A Teoria do Plano Livre foi desenvolvida por Le Corbusier em 1926.
Não digo isso para diminuir a importância da Bauhaus, mas, pelo contrário, para valorizar uma instituição que soube canalizar, num momento único, as ideias que estavam em curso. Walter Gropius foi inclusive o primeiro a combater a ideia de um “estilo Bauhaus” como algo a ser copiado, imitado, que pode influenciar. É uma noção fácil e por isso mesmo dá lugar a livros sem consistência, que, na minha opinião, demonstram um desconhecimento total do que seja um projeto de arquitetura. É possível aproximar as atitudes da Bauhaus e da D.A.U., onde Nunes trabalhava, no que se refere à organização do trabalho. Suas equipes contavam com participação de mestres-de-obras e operários, que influíam nas decisões dos projetos, unindo o saber empírico ao conhecimento mais acadêmico dos arquitetos e engenheiros.
Poderia explicar isso melhor?
Não conheço nenhum documento que prove que Nunes pensava a organização do trabalho da D.A.U. (Diretoria de Arquitetura e Urbanismo). Essa, na minha opinião, é muito mais fruto da competência dos engenheiros. Mas pode-se sem dúvida dizer, numa forma análoga muito geral, que a experiência da D.A.U., inclusive a fabricação do famoso cobogó, tenha sido fruto justamente da racionalização destes engenheiros, que pelo experimentalismo tiveram uma atitude semelhante à da primeira fase da Bauhaus, não à da segunda. Experiências de racionalização de canteiros e de pré-moldados foram feitas em seguida por muitos arquitetos no Brasil, como o grupo Arquitetura Nova, motivado em grande parte por razões políticas.
É possível então identificar em Recife, hoje, heranças nas formas de trabalhar e pensar a cidade deixadas por Luiz Nunes?
Nada me indica que Luiz Nunes “pensasse a cidade”, no sentido de uma totalidade em evolução, porque mesmo o arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), na minha opinião, não o fazia, o que fica claro no memorial do seu projeto para Brasília, onde a evocação do bulevar novecentista da Paris de Haussmann é clara. Em 1937, o saber urbanístico era mais da competência dos engenheiros e o pensamento sobre a cidade ainda se dava em termos de embelezamento (área dos arquitetos), saneamento, infraestrutura e sistema viário. Por isso não acho que haja tais heranças. Há muita reivindicação de herança, inclusive há uma invenção de uma suposta Escola de Recife. Muitos poderão dizer que são membros dessa linhagem, mas isso, na minha opinião, é construção dos historiadores.
Sônia Marques é doutora pela E.H.E.S.S (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociale). Ministrou aulas em diversas universidades no Brasil e no exterior. Foi presidente do Instituto de Arquitetos de Pernambuco (1979-1980) e Diretora Técnica Regional (1994-1996) do IPHAN. Em 2004, atuou como membro do Comitê Internacional de Educação do DOCOMOMO. Em 2014-15, foi Coordenadora Geral do DOCOMOMO Brasil. Atualmente pesquisa a relação entre artes visuais e arquitetura contemporânea.