O tema “mulheres na Bauhaus” é rodeado de muitas anedotas e mitos. Theresia Enzensberger explica: no que diz respeito à equidade de direitos entre os gêneros, embora a Bauhaus fosse progressista, o gesto inclusivo de seus fundadores permaneceu incompleto.
Quando a #MeToo chegou ao mundo da arte, lia-se: “Não ficamos surpresas quando curadores oferecem exposições ou apoio e esperam favores sexuais em troca. Não ficamos surpresas quando galeristas romantizam, minimizam e/ou omitem a conduta sexista imprópria de seus artistas. Não ficamos surpresas quando um colecionador ou potencial patrocinador oferece um encontro com intenções sexuais. Não ficamos surpresas quando há vingança quando nós não nos sujeitamos. O abuso de poder não é uma surpresa”. A carta aberta, publicada pelo The Guardian no dia 30 de outubro de 2017 e assinada por milhares de participantes do circuito da arte, demonstra de maneira impressionante o quanto já passava da hora de ocorrer uma discussão pública sobre relações de poder também nesse setor. Mas há coisas no universo da arte que dificultam especialmente a elaboração desse tema: o mito do gênio, por exemplo, o capital social oculto, ou o fato de que a vanguarda se acha especialmente progressista e tem relativamente muitos problemas em cogitar a possibilidade de abuso de poder ou sexismo em suas próprias fileiras.Esses pontos cegos não são novos. A Bauhaus é considerada hoje uma das mais importantes instituições da Modernidade, precursora da moradia social, uma escola progressista e forjadora de talentos. Tudo isso está certo, embora não seja tudo. Quando Walter Gropius fundou a escola em Weimar, em 1919, constava do programa de ensino: “Qualquer pessoa íntegra pode ser aceita como aprendiz sem discriminação de idade e sexo, caso seu talento e sua formação anterior sejam considerados suficientes pelo conselho de mestres”. A Grossherzoglich-Sächsische Kunsthochschule (Escola Superior de Artes do Grão-Ducado da Saxônia) de Weimar, precursora da Bauhaus, era uma das poucas academias de artes nas quais, ainda antes da fundação da República de Weimar, as mulheres já eram aceitas. O anúncio de Gropius teve grande ressonância: no primeiro semestre de 1919, o percentual feminino na Bauhaus era de mais de 50%, com 84 estudantes mulheres e 79 homens. O conselho de mestres ficou sobrecarregado com a alta procura e Gropius exigiu então uma “seleção apurada logo depois da admissão, sobretudo entre as representantes do sexo feminino, presentes em número desproporcional”. Essa seleção significava remeter as mulheres a seus domínios, colocando-as na oficina de tecelagem, que em algum momento passou a ser denominada de “classe de mulheres”.
Muitas alunas viam esse contexto de trabalho de forma positiva: os outros mestres não se envolviam com as questões da oficina, onde havia uma atmosfera de autodeterminação e solidariedade. Gunta Stölzl, que em 1920 assumiu por um curto espaço de tempo a “classe das mulheres”, gostava do trabalho têxtil, em que seu talento e suas tarefas se aliavam. Por iniciativa das estudantes, ela foi promovida em 1927 a jovem mestre, assumindo a responsabilidade completa pela tecelagem. Stölzl continuou sendo a única mulher mestre na Bauhaus. E também Anni Albers, que originalmente pretendia se tornar pintora, encontrou na arte da tecelagem um meio para dar vazão à sua criatividade. Ela experimentava com abstrações, compreendia o retículo rigoroso da cadeira de tecelagem como inspirador e era altamente inovadora em sua forma de lidar com tecidos: Anni Albers recebeu seu diploma da Bauhaus em 1930 com uma cortina de algodão e celofane capaz de abafar o som e refletir a luz.
Mas nem todas as mulheres iam voluntariamente para a tecelagem. A seleção de Gropius surtiu efeito e, nos anos que se seguiram à fundação da escola, o número de mulheres foi diminuindo constantemente. A tecelagem era considerada um ofício artístico e ficava, portanto, em um dos mais baixos patamares na hierarquia de arte e design. É uma ironia amarga do destino constatar que a oficina de tecelagem foi, durante muitos anos, a única lucrativa da escola, contribuindo assim para financiar os altos voos artísticos das áreas dominadas pelos homens.
Oskar Schlemmer, responsável pelas aulas de pintura de murais, expressava seu desapreço da seguinte maneira: “Onde há lã, há também uma mulher tecendo, mesmo que seja só para passar o tempo”. Mas as mulheres avançavam também para sua oficina, como por exemplo Lou Scheper-Berkenkamp, que, contrariando a instrução do mestre de obras de que as áreas externas estariam reservadas aos homens, era frequentemente vista nos andaimes. Marianne Brandt também conquistou seu lugar no domínio masculino da oficina de metais, tendo se tornado responsável por alguns dos designs mais famosos da Bauhaus: o cinzeiro redondo com recorte triangular e a chaleira MT49 são apenas dois exemplos. Nem mesmo o ensino de arquitetura, inaugurado em 1926, ficou isento da participação feminina. Em 1928, Lotte Stam-Beese foi a primeira mulher a ser aceita ali. No entanto, esse fato inusitado foi precedido de um caso amoroso entre ela e Hannes Meyer, o novo diretor da Bauhaus, que não acabou bem para ela: quando o relacionamento entre os dois se tornou público, ele pediu para ela interromper seu estudo.
Essas guerreiras individuais eram admiráveis, mas não tiveram uma vida fácil. Um setor no qual a relação entre os gêneros ainda não estava totalmente esclarecida e que proporcionava dentro da Bauhaus alguma liberdade às mulheres era a fotografia. Mulheres como Gertrud Arndt e Lucia Moholy se reinventaram nesse espaço de liberdade.
Depois do fechamento da Bauhaus pelos nazistas em 1933, seguiram-se, para muitos ex-integrantes da escola, anos confusos, caóticos e muitas vezes trágicos. Seis alunas foram assassinadas em campos de concentração, uma morreu em consequência de um bombardeio. Uma série de artistas conseguiu fugir para o exílio: Gunta Stölzl fundou uma tecelagem manual na Suíça; Anni Albers passou a dar aulas, a partir de 1933, no Black Mountain College, na Carolina do Norte, EUA; e Lotte Stam-Beese passou a viver na Holanda.
O que resta das mulheres da Bauhaus? Uma foto famosa de Lux Feininger mostra um grupo de jovens mulheres em uma escada do prédio da Bauhaus em Dessau. Elas tinham cabelos curtos, usavam calças compridas, olhavam livres e despreocupadas para as câmeras. Por mais progressista que isso pareça, não devemos nos deixar levar pelos pontos cegos do passado, e olhar para essas mulheres como artistas autônomas. Quantas vezes não dizem: “Essa não era a mulher de Joseph Albers, Mart Stam, László Moholy-Nagy?”. O fato de que há cada vez mais exposições individuais dedicadas às mulheres da Bauhaus, de que elas recebem seus próprios registros na Wikipédia e de que historiadoras e historiadores da arte escrevem sobre elas alimenta a esperança de que coisas desse tipo logo acabem.
Outubro de 2018