Hernán D. Caro  Kafka e a literatura latino-americana

Gabriel Garcia Márquez. Barcelona 1969
Gabriel Garcia Márquez. Barcelona 1969 Colita; © Arquivo Colita Fotografía

Até hoje Kafka tem grande influência na literatura latino-americana. Saiba mais a respeito.

A importância de Franz Kafka (1883-1924) para a literatura latino-americana é imensa e variada. Essa influência já era perceptível quando o escritor ainda estava vivo e se estende até o tempo presente. “Kafka marcou todos nós”, afirmou certa vez a escritora argentina Samanta Schweblin. Até hoje, é comum se deparar com os ecos de Kafka nas mais diversas obras de autoras e autores latino-americanos.

É provável que qualquer estudo histórico da influência de Kafka sobre a América Latina – ou sobre qualquer outra região do mundo – seja inevitavelmente incompleto. A seguir apresentamos, portanto, uma abordagem em cinco etapas dessa história interminável.

1. A liberação da fantasia

Em 1947, Gabriel García Márquez (1927–2014) ainda era um estudante de Direito obcecado por poesia. Foi quando um pequeno livro caiu casualmente em suas mãos: A metamorfose, de Franz Kafka. No volume Cheiro de goiaba – publicado em 1982, o ano em que o jornalista e escritor colombiano recebeu o Prêmio Nobel da Literatura – García Márquez conta como, à noite, pegou o livreto emprestado de um colega de quarto. “Ainda me lembro de cor da primeira frase: ‘Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso’”. Naquele momento, ele pensou: “Que diabos, ele contava as coisas da mesma maneira que a minha avó”. E também: “Então se pode fazer isso”. Com isso, García Márquez se referia à forma de narrar uma história na qual ocorrem eventos sobrenaturais, sem ao menos esboçar uma careta, como se esses eventos fossem completamente normais, até mesmo cotidianos – assim como sua avó falava, em sua infância, das mais estranhas coisas.

Como relata García Márquez em sua autobiografia Viver para contar, naquele momento ele tomou consciência de que um autor “só precisa escrever alguma coisa” para que ela se torne verdadeira, ou seja, não são necessárias “outras provas”. O chamado “realismo mágico”, gênero literário que marcaria mais tarde as obras Cem anos de solidão e O amor nos tempos do cólera, baseia-se em grande parte nessa premissa.

Kafka, dizia García Márquez, “apontou um novo caminho” em sua vida. Um dia após seu encontro com A metamorfose, o colombiano começou a escrever seu primeiro conto, A terceira resignação, sobre um menino que sofre de tifo na infância e é colocado vivo pela própria mãe em um caixão, para que possa crescer ali dentro. O conto foi publicado na época por um jornal importante. Pouco tempo depois, o estudante de Direito abandonaria a universidade para se dedicar à literatura, atividade que exerceu até o fim de sua vida.

2. Uma barata que sonha

Kafka descreve o “inseto” no qual Gregor Samsa se transformou como “besouro” ou “escaravelho”. Apesar disso, nos países de língua espanhola, é usada a palavra cucaracha (barata) quando o assunto é o destino do protagonista de A metamorfose. Qualquer que tenha sido a razão para essa metamorfose adicional, não se trata de um ato de indelicadeza com relação a Kafka. Muito pelo contrário.

Um bom exemplo pode ser encontrado na obra de Augusto Monterroso (1921–2003). O autor guatemalteco, que se definia como grande leitor de Kafka, escrevia regularmente textos irônicos, curtos ou extremamente curtos (alguns deles compostos apenas de uma frase encadeada), que geralmente tratam de animais e se assemelham a fábulas.

“Kafka me acompanha faz tempo”, escreveu Monterroso nos fragmentos de diário A letra e. No restante de sua obra, há várias outras homenagens a Kafka. A mais conhecida delas leva o título de A barata sonhadora (1969): “Era uma vez uma barata chamada Gregório Samsa que sonhava que era uma barata chamada Franz Kafka que sonhava que era um escritor que escrevia sobre um empregado chamado Gregor Samsa que sonhava que era uma barata”.

3. O universo como labirinto

É possível que nenhum outro escritor latino-americano tenha se dedicado mais intensamente a Kafka que o argentino Jorge Luis Borges (1899–1986). O poeta e escritor de grandes histórias fantásticas, que descobriu Kafka aos 17 anos, escreveu no decorrer de sua vida vários ensaios sobre o autor nascido em Praga, bem como prefácios para suas obras e pelo menos um poema sobre o próprio. Além disso, Borges traduziu diversos contos de Kafka para o espanhol.

Borges admirava a habilidade de Kafka no uso de uma linguagem precisa para descrever cenas e imagens que muitos de nós reconhecemos de nossos sonhos, ou melhor, dos pesadelos: “O destino de Kafka foi transmudar as circunstâncias e as agonias em fábulas. Ele retratava pesadelos sombrios em um estilo claro”. Ainda segundo Borges, “Kafka é o grande escritor clássico de nosso atormentado e estranho século”. Diga-se de passagem, os textos de Borges também são conhecidos por sua brilhante combinação de concisão, precisão linguística e força narrativa.

Borges – amante de labirintos, espelhos e paradoxos no espaço e no tempo – era fascinado por vários dos temas que, para ele, eram “típicos” da literatura de Kafka. Entre esses, está a mensagem importante que nunca chegará ao destinatário, como em Uma mensagem imperial; a tentativa vã de uma pessoa de superar um obstáculo aparentemente pequeno, como no texto curto em prosa Diante da lei; e a impossibilidade de, apesar de todos os esforços, seguir em frente, por exemplo, para se aproximar de um prédio, como é o caso do romance O castelo.

Acima de tudo, Borges considerava um determinado tema essencial para a visão de mundo de Kafka: a relação desesperada do ser humano frente a uma ordem superior, cujas leis ele não consegue compreender – seja essa ordem um tribunal, o imperador, Deus ou simplesmente o cosmo infinito. E é precisamente nesse contexto que se pode constatar a influência direta de Kafka em algumas das narrativas do autor argentino, como por exemplo em A aproximação a Almotásim, A biblioteca de Babel, A loteria da Babilônia e O milagre secreto.

4. A viagem impossível

Há textos que se comunicam entre si de maneira enigmática, refletindo-se mutuamente ao longo dos anos – inclusive aqueles, cujos autores não sabem da existência uns dos outros. Há três contos latino-americanos que dialogam nesse sentido. Todos os três evocam algumas das sensações que compõem o que hoje chamamos de “kafkiano”.

O primeiro deles, publicado em 1952 e intitulado O ferroviário, é considerado a melhor narrativa de Juan José Arreolas (1918–2001), um clássico da literatura mexicana. Trata-se de um estranho que chega a uma estação ferroviária abandonada. Seu trem não vem. De repente, surge um funcionário idoso da companhia ferroviária. O viajante pergunta ansioso se o trem ainda virá, pois ele precisa “mesmo chegar a T. amanhã”. O senhor idoso o aconselha a alugar um quarto por um mês em uma pensão – e começa a contar ao estranho, cada vez mais surpreso, sobre o grotesco sistema ferroviário do país. Os trens não teriam horários fixos; em alguns pontos, os trilhos “estão simplesmente indicados no solo por duas linhas”; em outros povoados, as estações seriam apenas pura aparência construída em plena selva, e as pessoas que lá estão seriam bonecos, “a perfeita imagem da realidade”: eles teriam “em seu rosto os sinais de um cansaço infinito”. Por fim, não fica claro se o estranho algum dia conseguirá sair dali.

A escritora argentina Ana María Shua (nascida em 1951) é especialmente conhecida por seus “microrrelatos”, histórias curtíssimas que se movem entre o sonho, o fantástico e o aparentemente absurdo. Do texto de número 212 de seu livro A sonhadora (1984), consta: “Esperando a chegada do trem na metade do campo, vestidos de domingo, conversando, compartindo o conteúdo das cestas sem preocupar-se com a falta de aterro, de dormentes, de trilhos, com a certeza alegre e silenciosa de que nenhum trem absurdo virá para quebrar a doçura da espera”.

A já mencionada Samanta Schweblin (nascida em 1978), também argentina, escreveu em 2002 Rumo à alegre civilização, um conto no qual ecoam os universos de Monterroso e Shua, bem como o som singular da voz narrativa de Kafka. Schweblin narra a história de um homem chamado Gruner – ele também um estranho em uma estação ferroviária estranha de interior –, que não consegue comprar uma passagem de trem porque, segundo o vendedor no guichê, não há troco. A situação bizarra repete-se dia após dia e Gruner testemunha como seu trem para a sonhada capital vai partindo repetidas vezes sem ele. Por pura perplexidade, Gruner se muda para o apartamento do funcionário da ferrovia e de sua esposa e ali conhece outros homens que também foram parar nesse lugar no meio do nada. Em algum momento, enfim, Gruner consegue embarcar – mas o que ele vai encontrar, quando chegar a seu destino?

5. A fonte inesgotável

Um século após a morte de Kafka, o fascínio desencadeado por seus escritos parece não ter fim. Escritores latino-americanos mais jovens também continuam a se inspirar nos cenários ameaçadores ou no estilo preciso de Kafka. A seguir, apenas dois exemplos:

Pergentino José (nascido em 1981) é um autor mexicano de origem zapoteca, que escreve tanto em espanhol quanto em loxicha, uma das variantes linguísticas zapotecas de Oaxaca e outros lugares. Os contos de seu livro Formigas vermelhas (2012) são ambientados no mundo dos zapotecas e combinam lendas antigas com o presente, realismo com eventos fantasmagóricos. “A mim interessa o kafkiano, esses espaços fechados nos quais você procura sua voz interna”, disse o autor. Assim, a influência de Kafka nos textos sucintos de José não passa despercebida. Em um deles, um homem tenta atravessar uma floresta, mas uma força desconhecida o impede. Em outro texto, alguém recebe a sinistra tarefa de proteger um povo que não é o seu. E uma outra história gira em torno de um jovem que, certa noite, espera pela mulher que ama, mas, de repente, tem a clara sensação de que sua história terminará de forma violenta.

Também do México vem a poeta e escritora Sandra Rosas (nascida em 1977), autora do livro El mar que no vio mamá (O mar que mamãe não viu), publicado em 2023. Rosas também cita Kafka como fonte importante de inspiração para suas obras, que mesclam com frequência reflexões sobre a relação entre mãe e filha, bem como alusões à violência misógina e cenas enigmáticas de sonhos. Um de seus textos diz: “O vendedor me mostra vários brincos e alguns deles são pássaros vivos. Em suas costas está amarrado um pedaço de metal, um lastro que os impossibilita de voar, mas eles funcionam como joias. O homem diz que o metal não os machuca. Ao mesmo tempo, ele admite com orgulho que, dessa forma, os pássaros não podem escapar. Coloco os brincos de pássaros em minha mão e percebo que o que ele chama de boa ideia, na verdade tem um nome diferente. Digo isso a ele, mas seu corpo já se ergue no ar enquanto minhas palavras se contraem em um sibilo”.

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