No início do século 20, o cinema era uma novidade e uma sensação – Franz Kafka era fascinado por ele. Em seus escritos, há numerosas menções aos filmes aos quais ele assistiu.
Cinema como distração e atração
Kafka tornou-se frequentador ativo de cinema já na década de 1910. O filme, que então engatinhava, ainda não era considerado arte, e muitos escritores se recusaram a colaborar com cineastas em roteiros. Eles não acreditavam na qualidade das adaptações de suas obras e optaram por não apoiar o cinema, que viam como uma “atração de feira” (ao contrário do teatro). A situação só mudou na década de 1920, quando os longas-metragens começaram, lenta mas seguramente, a ser considerados obras de arte e não apenas entretenimento leve.O primeiro cinema permanente a se estabelecer em Praga foi U modré štiky [Pico Azul], localizado na rua Karlova. A partir de 1907, o local passou a ser gerenciado pelo ilusionista Viktor Ponrepo, que usava exibições de filmes para incrementar suas performances teatrais e também acompanhava filmes mudos com comentários brilhantes. Os folhetos publicitários prometiam “cenas da vida e do mundo dos sonhos, que eram capazes de nada menos do que satisfazer todas as necessidades dos espectadores”. Kafka era frequentador assíduo, bem como do Cinema Oriente, que funcionou a partir de 1908 na rua Hybernská, em Praga. Apenas um ano depois, outro cinema, o elegante Lucerna, que também abrigava um cabaré e um café, abriu suas portas para a população de Praga. O lugar está em funcionamento até hoje (apresentando regularmente, por exemplo, o Festival de Cinema em Língua Alemã Das Filmfest). Kafka costumava frequentá-lo sozinho, com a família ou com amigos. Entre as pessoas mais próximas estava o escritor Max Brod, que muitas vezes lembrava como ele e Kafka frequentavam cinemas não apenas em Praga, mas também em suas viagens pela Itália, França e Alemanha.
“Labirinto de Franz Kafka”, obra de Stanislav Jurik | Stanislav Jurik
“Tráfico de brancas” e outros blockbusters
O filme Tráfico de brancas (Den hvide slavehandel I, 1911), do diretor dinamarquês August Blom, era relativamente longo, ao contrário de seus primeiros curtas: com notáveis 55 minutos, tornou-se o primeiro média-metragem da história do cinema. Foi recebido com muito interesse pelo público. Embora a reação nem sempre fosse positiva – o filme girava em torno de um bordel, provocando discussões sobre se deveria ser considerado kitsch e proibido, em função, entre outros, da sexualidade que retratava; ou se poderia ser visto como uma peça ousada de cinema – , por toda parte se discutia a respeito. O escritor tcheco Jiří Mahen escreveu uma resenha do filme para o jornal Lidové noviny em 1911, argumentando que “ (...) quem tem consciência no coração e razão na cabeça é obrigado a vomitar. É uma estupidez cinematográfica perfeitamente ordinária, nada mais”. Apesar de sua trama polêmica, essa história cheia de ação conquistou Kafka com suas emoções, sua localização exótica e suas muitas perseguições automotivas e tiroteios em telhados no final. Kafka ficou fascinado com o tratamento dado ao destino da bela Edith, que foi a Londres visitar uma parente, caiu nas mãos de bandidos no navio e foi parar em um bordel, onde dois homens se apaixonaram por ela: mas foi preciso o homem certo, engenheiro de um navio a vapor, para resgatá-la com a ajuda da polícia. Kafka teve sonhos apaixonados e aterrorizantes tanto com a inocente Edith quanto com a escravizadora sádica que abusou dela.Kafka também apreciava outros filmes mudos da época, principalmente os primeiros documentários que retratavam Praga, a cidade das cem torres. Vale a pena mencionar aqui a encantadora viagem de dois minutos em um bonde aberto (Jízda Prahou otevřenou tramvají, 1908), com direção de Jan Kříženecký, um cinegrafista, fotógrafo e pioneiro do cinema tcheco. Usando a câmera originalmente colocada na frente dos bondes (servindo as linhas 3 e 7), assistimos a imagens que mostram a atmosfera de uma Praga agora desaparecida (o aterro, as pontes, o Letná, a vista do Castelo de Praga e da Cidade Judaica – no bairro de Kafka – no período em que estava sendo removida, durante seu saneamento).
Kafka ficou também encantado com o documentário italiano Primeiro Circuito Aéreo Internacional de Brescia (Primo Circuito Aereo Internazionale Di Aeroplane In Brescia , 1909), dirigido por Adolfo Croce, uma curiosidade técnica que captura o prestigiado evento do Grande Prêmio. O filme mostra a preparação dos aviões para levantar voo e sua decolagem real. Vemos a atuação dos mecânicos, sentimos a expectativa de 50 mil espectadores e o entusiasmo sincero dos construtores e cineastas pelas máquinas voadoras. E, por fim, celebramos a vitória de Glenn Curtiss nessa competição aérea internacional realizada em 9 de setembro de 1909. Kafka, que estava passando as férias no nordeste da Itália naquele momento, esteve presente no evento juntamente com Max Brod, e escreveu um relato sobre a experiência emocionante, Os aeroplanos em Brescia, que foi publicado no diário Bohemia de Praga: “Curtiss vai voar pelo grande prêmio de Brescia. (...) Já ressoa o motor de Curtiss, mal se consegue vê-lo e já voa para longe, voa para a planície que se expande à sua frente, rumo aos bosques que só agora parecem se erguer a distância. Curtiss voa longamente sobre os bosques, ele desaparece, vemos os bosques, mas não a ele”.
No entanto, Kafka não viajou apenas fisicamente, mas também através do cinema. A este respeito, mencionemos os filmes italianos Peschiera, Lago Maggiore, Liguria, Il corse de Mirafiori (1907-1913, dirigidos coletivamente), que também foram exibidos em Praga e ofereciam a seus espectadores uma colorização (isto é, a coloração dos planos em verde, azul, amarelo, sépia, castanho etc). Esses documentários italianos tinham um estilo meditativo, que transmitia uma atmosfera de férias, e o público, incluindo Franz Kafka, gostava de ser levado pelas ondas do mar, pela beleza de lagos, e pelas cavernas e monumentos antigos. Eles também incluíam um desfile final de socialites e da moda daquela época (senhoras de chapéu), tendo como pano de fundo uma famosa corrida de cavalos.
Uma pintura perdida e a busca por um lar
E a comédia? Destaque para a produção francesa Nick Winter e o roubo da Mona Lisa (Nick Winter et le vol de la Joconde, 1911), dirigida por Paul Garbagni e Gérard Bourgeois, um divertido filme de paródia de dez minutos envolvendo o primeiro produtor de cinema do mundo, Charles Pathé. A história é inspirada em um acontecimento real no Louvre: o roubo da Mona Lisa em 21 de agosto de 1911 e a subsequente investigação policial, que, no entanto, não deu em nada: a pintura foi encontrada, mais ou menos por acaso, dois anos depois na Itália. Curiosamente, o fluxo de visitas ao Louvre não sofreu após o roubo da pintura rara. Pelo contrário, milhares de pessoas – incluindo Franz Kafka e Max Brod – acorreram à galeria para ver o espaço vazio na parede.Kafka declarava-se sionista convicto durante um período de sua vida. Isso ocorreu na época em que ele contribuía para o jornal sionista Selbstwehr e aprendia hebraico, embora seu conhecimento da língua tenha permanecido em um nível elementar. A língua de Kafka era evidentemente o alemão, embora ele fosse também fluente em tcheco e francês. Seus diários mostram que ele até flertou com a ideia de se mudar para a Palestina, não só por causa de sua saúde precária (o clima lá poderia melhorar sua tuberculose), mas também em função de amigos que o sustentariam financeiramente por lá. E como isso se relaciona com o cinema? Em 1921, Kafka escreveu em seu diário: “à tarde, um filme sobre a Palestina”. Sabemos que isso se refere ao filme Regresso a Sião (Shivat Zion, 1921), ao qual ele assistiu no cinema Lido, na rua Havlíčkova, e que retrata a nova vida e o desenvolvimento econômico da Palestina, incluindo uma mistura colorida de povos e os ajustes políticos necessários. Filmada sob encomenda em Jerusalém, a obra tinha como objetivo promover e informar os judeus sobre como era a situação no território da Palestina. Até que ponto Kafka levou a sério sua decisão de deixar a Europa e o quanto essa experiência cinematográfica em particular o influenciou, nunca saberemos. A Palestina permanece para Kafka um terreno inalcançável, um chão que ele é incapaz de pisar, perto o suficiente para tocar e ao mesmo tempo distante – um espaço imaginário, um filme.
Afinal, o que os filmes realmente significaram para Kafka? Só podemos especular. Entretanto, uma coisa é certa: o famoso escritor era fascinado por cinema e sabia de cor as programações semanais do circuito cinematográfico. Para ele, cinema era beleza, alegria, mas também sofrimento. É bem possível que os filmes significassem para ele a chance de escapar de sua solidão e de sua própria vida – uma vida, à primeira vista, de homem comum. Advogado de formação, Kafka atuava desde 1908 como funcionário no Instituto de Seguro de Acidentes de Trabalho em Praga (que ficava a poucos passos do cine Lucerna), mas o trabalho não era satisfatório e o entediava. Ele executava seu trabalho de forma bastante consciente, mas achava-o terrivelmente maçante. Dividia seu tempo livre entre as tarefas na loja do pai rígido, escapadas com seu crescente círculo de amigos – cafés, cinemas, cabarés, bordéis – e experimentos literários cada vez mais importantes. Como bem observou Hanns Zischler: “Ele fugia para o cinema várias vezes ao ano, buscando algo que o anestesiasse. Ele ia ao cinema para esquecer. Provavelmente não há lugar mais adequado para esquecer de forma prazerosa”.
Janeiro de 2024