Kafka escreveu sua “Carta ao pai” em 1919, aos 36 anos. A carta nunca chegou ao seu destinatário, mas se tornou um famoso comentário autobiográfico. E, assim como Kafka, dezenas de autores se preocuparam com os emaranhados de sua identidade.
Autobiografia, autoficção, ficção: os limites são fluidos. A autoficção existe entre dois polos e tende a misturar um pouco os dois gêneros entre si. Fatos, pessoas e emoções são reais, mas enriquecidos com fantasia; às vezes há mais fantasia, às vezes mais realidade. Os escritores brincam com o “eu” para que ele possa se expressar melhor.
Porque, quando somos confrontados com fatos insuportáveis – “A cada 40 minutos, alguém se suicida na terra do queijo e dos tranquilizantes. E a cada sete minutos, uma mulher é assediada sexualmente ou estuprada”, lembra a escritora francesa Chloé Delaume –, é melhor poder escapar. Para a autora de Pauvre folle (literalmente “pobre louca”), é “nosso dever transformar palha em ouro, se não quisermos acabar em um posto de saúde ou em uma clínica particular”. Escrever significa dar um nome às coisas para que elas existam. Em 1983, quando seu pai matou sua mãe – que queria deixá-lo – ainda não havia uma palavra que expressasse feminicídio e que, portanto, levasse a pensar nisso como tal. Se você dedica sua vida à escrita, você também cria para si mesmo um espaço de resiliência. A escritora encontra uma imagem memorável para suas experiências: sentir-se “golpeada pela realidade”.
Kafka provavelmente sentiu o mesmo quando escreveu sua famosa Carta ao pai. O texto é como uma mala com dezenas de pequenas lâminas afiadas cuidadosamente alinhadas – palavras e ações com as quais a criança, o jovem e o adulto foram incansavelmente atormentados pelo pai. A família parece uma caixa sonora de violência sistêmica, da pedagogia tóxica à brutalidade masculina. Em uma estante, Pauvre folle pode ser colocado não muito distante de Carta ao pai.
A verdade: uma questão de sentimento
Quem está dizendo a verdade? Quem mentiu, e de que forma? Daniela Dröscher se faz essas perguntas em Lügen über meine Mutter (Mentiras sobre minha mãe, em tradução literal). Ela explora o embaçamento das memórias assumindo o papel de seu alterego de infância. O peso de sua mãe era realmente a fonte de todos os problemas, como seu pai afirmava?
Em seu livro Vati (Papai), de 2021, a escritora austríaca Monika Helfer, por outro lado, admite abertamente ir até onde a ficção torna tudo melhor: “Você não precisa saber tudo, e se você não sabe tudo ao contar uma história, sempre pode torná-la mais agradável do que era originalmente. Quando você sabe tudo, isso se torna muito mais difícil”. Essas três autoras também podem ser colocadas ao lado de Kafka na estante.
Escrever e ler são atos políticos
“A arte é a maneira como nos imprimimos no mundo, e então não há como nos apagar”, escreve a autora afro-americana Leila Mottley em seu romance Nightcrawling (A notívaga, em tradução livre), inspirado em uma história real. Ela descreve a vida de meninas negras em Oakland e revela a realidade por trás das máscaras. Assim como Kafka, Mottley revela a realidade sobre seu pai: “Você [...] talvez fosse mais alegre antes que os filhos, eu em particular — o decepcionassem e oprimissem em casa (se vinham estranhos, você era outro)”.
E, quando lemos esses textos, vemos as máscaras. Não importa qual rótulo esteja na estante, nós, leitores de livros e do mundo, podemos escolher quem lemos. E podemos escolher a quem dizemos: eu acredito em você.
Janeiro de 2024