„A obra de Humboldt sobre o Novo Mundo é referência constante para seus contemporâneos que vieram ao Brasil“,
afirma a historiadora Lorelai Kury, professora da Fundação Oswaldo Cruz (RJ) e pesquisadora das viagens científicas pelo país nos séculos 18 e 19.
Essa influência pode ser sentida, por exemplo, no interesse pelas rotas rumo ao interior brasileiro. “Nas publicações e correspondências, Humboldt insiste que é preciso ir além do litoral para de fato conhecer o continente”, observa o historiador Pablo Diener, professor da Universidade Federal do Mato Grosso e autor de livros como o recém-lançado Martius (Capivara Editora), escrito com Maria de Fatima Costa. “Tal preocupação contagiou os outros viajantes, sobretudo até 1850, inclusive aqueles que estiveram no Brasil”

Outra marca significativa é o olhar abrangente que Humboldt lançava sobre a paisagem, buscando compreender de que forma a junção de elementos como temperatura, umidade e pressão atmosférica impactava a vida humana, animal e vegetal. “Por conceber a natureza e sua descrição de forma global, pensando os fenômenos como inelutavelmente relacionados entre si, com sua origem geográfica e meio ambiente, Humboldt, em certa medida, induziu todos os viajantes-naturalistas no Brasil ao exercício permanente da reflexão filosófica sobre seus objetos de investigação e sobre suas práticas discursivas de representação”, defende o professor Luiz Barros Montez, coordenador do grupo de estudos Linguagem e Discursos da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Razão e sensibilidade
Ao lado da visão integradora, Humboldt também se preocupava com a maneira de elaborar uma narrativa. “Para ele, o naturalista deveria representar a intricada tessitura da natureza por meio da articulação de várias linguagens, como texto, ilustrações, tabelas e mapas”, aponta Douglas Canjani, arquiteto e professor da PUC-São Paulo. “A combinação entre rigor científico e imaginação poética é uma das premissas do projeto de história natural de Humboldt”.
Autor da tese A percepção estética na visão da natureza de Wied-Neuwied (2005), defendida na Universidade de São Paulo, Canjani observa na obra do príncipe renano, que viajou entre 1815 e 1817 pelas então capitanias do Rio de Janeiro e Bahia, uma tentativa de conjugar essas esferas do saber. “Wied-Neuwied não apenas utilizou a viagem de Humboldt à América como modelo para sua expedição ao território luso-americano, como cita o ideário humboldtiano com frequência ao longo do livro Viagem ao Brasil [1820-1821]”, diz o pesquisador.
O conteúdo das Instruções de Serviço, espécie de guia confeccionado para nortear a Missão Austríaca (1817-1835) no Brasil, também revela influência humboldtiana. “Elas mostram claramente como Humboldt foi, ao lado de outros autores, uma das referências centrais durante sua concepção e organização”, diz Montez. Um dos integrantes dessa expedição científica, o médico e botânico bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius, talvez tenha sido o mais importante humboldtiano a ter passado pelo Brasil, na opinião de boa parte dos pesquisadores. “Na produção científica de Martius, imagem e texto articulam-se organicamente, bem como homem e natureza são estreitamente relacionados em seus relatos, como também o eram para Humboldt”, diz Kury.

Pablo Diener percebe, inclusive, uma grande afinidade de comportamento entre Humboldt e o jovem Martius, muito embora houvesse entre eles uma diferença de 25 anos de idade. “Eles tinham personalidades similares. A exemplo de Humboldt, Martius reuniu um volume considerável de correspondências, com cerca de 30 mil cartas, algumas delas trocadas com o próprio Humboldt”, conta o especialista. “Por sua vez, Humboldt demonstrava em cartas muito interesse pelas descobertas de Martius e seu parceiro, Johann Baptist von Spix, no Brasil”.
Novas formas de representação
Oriundo de família nobre, Humboldt bancou as próprias expedições e, sem perder tempo, viabilizou a publicação dos relatos de viagem, que obtiveram grande repercussão na época. “As publicações de Humboldt apareceram com grande velocidade e tiveram um caráter normativo”, fala Diener. “Por esse motivo, não há viajante na época que não tenha tido Humboldt na cabeça”. O próprio Wied-Neuwied reunia em sua biblioteca particular 14 títulos escritos por Humboldt, a exemplo do célebre Voyage aux régions équinoxiales du nouveau continente fait en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, sobre a odisseia pela América ao lado de Bonpland.
A proposta narrativa de Humboldt correspondia à emergência de novas formas de representação historiográfica e literária em curso na Europa do final do século 18. Paralelo a isso, por volta de 1800, passava a vigorar a ideia de que a raça humana era fruto da evolução de uma única espécie.
„A civilização europeia passou então a se repensar em contraste com o ‘outro’: outras culturas, outras civilizações. Uma das consequências disso foi o surgimento de um amplo público leitor ávido por relatos de viagens com motivações existenciais.“
Professor Luiz Barros Montez
Em seus relatos, Humboldt buscava transmitir ao leitor o mesmo impacto estético e emocional que experimentara no Novo Mundo. “Surge a questão do prazer e do desprazer da narrativa sobre a natureza. Por captar pioneiramente essas mudanças históricas e psíquicas, o modelo humboldtiano passou a ser perseguido em maior ou menor grau também por todos os viajantes-naturalistas no Brasil. Estes buscaram sempre causar um impacto sobre o público leitor europeu”, prossegue Montez.
Entretanto, a obra humboldtiana não influenciou apenas os viajantes-naturalistas de passagem pelo Brasil. Segundo Kury, “Humboldt foi um dos autores que deu dignidade geográfica à América, ajudando a mostrar que nosso continente não era inferior à Europa, mas, sim, diferente”.