O neoliberalismo quer as pessoas como agentes flexíveis, os novos fundamentalismos querem identidades rígidas. Ambas as ideologias determinam nossa existência social de hoje – e castram nossa liberdade ao não ver ou não permitir que as ideias de liberdade e autodeterminação se transformem ao logo do tempo. A filósofa Juliane Rebentisch reivindica de uma sociedade democrática que ela não reprima a dimensão histórica da liberdade. Em conversa com Ekkehard Knörer, ela fala sobre a coerção para a autorrealização criativa, a cultura das selfies, o movimento duplo da liberdade e por fim, amor e arte.
Seu pensamento segue a tradição da Teoria Crítica. Isso significa também que sua crítica às demandas exageradas que a organização política e econômica da sociedade impõe aos indivíduos é muito fundamental. No entanto, diante do neoliberalismo atualmente dominante, essa crítica é bem diferente daquela feita pela antiga Teoria Crítica.Se vamos falar do estado atual do capitalismo, gostaria de registrar brevemente que existe uma simultaneidade do não simultâneo. Isso significa que aquilo que podemos discutir com Ève Chiapello e Luc Boltanski sob o título de “novo espírito do capitalismo” não deve ser mal interpretado como a única forma atual do capitalismo. Isso seria errado em escala global, mas já é algo distorcido em relação às sociedades do capitalismo tardio do Ocidente. O “espírito antigo do capitalismo” continua a existir ao lado do novo. De certa forma, é preciso incluir parênteses nessa discussão à qual você se refere.
Mas dentro desses parênteses é realmente possível afirmar, para um determinado segmento das sociedades ocidentais, que o que caracterizou as coerções dos anos 1950, ou seja, a exigência de adequação a certas especificações de papéis, não se aplica mais hoje dessa forma. O que não quer dizer que não haja mais nenhuma coerção. A exigência de conformidade com papéis sociais prescritos foi substituída, sob o signo da competição, pela coerção para a autorrealização criativa. Hoje os sujeitos não são mais normatizados de acordo com determinados padrões de comportamento; em vez disso, o que é explorado é seu potencial de desvio. Outra forma, talvez ainda mais dramática, de se dizer isso: hoje é justamente a potencialidade do indivíduo, sua capacidade de extrapolar os limites de qualquer atuação específica (desempenho e/ou papel) o que se procura na mercadoria força de trabalho, pois ela interessa em sua aplicabilidade flexível.
O foco em possibilidades supostamente infinitas transforma o presente em uma atemporalidade peculiarmente amortecida.
Além disso, porém, a demanda de uma performance de potencialidade traz o problema de colocar os sujeitos em uma certa distância de si mesmos como agentes em contextos sociais concretos. Certamente podemos ver isso como uma forma de alienação. Os efeitos nos indivíduos lembram o que Hegel, em sua crítica do Romantismo, uma vez chamou de “consciência infeliz”: o foco unilateral em suas possibilidades supostamente infinitas tende a transformar o futuro dos indivíduos em presente e seu próprio presente em uma atemporalidade peculiarmente amortecida.
Entendo que se possa descrever isso como uma forma de coerção. Mas não se trata de uma forma de coerção que abre um espectro maior de possibilidades de ação, um espectro que também pode ser chamado de liberdade? Sob a pressão de se reinventar, existe, afinal, a possibilidade de se reinventar dentro de determinados limites, o que podemos descrever como um momento de liberdade.
Comparada a uma situação em que os indivíduos precisavam preencher determinados papéis, com duras sanções em caso de desvio, a situação de hoje de fato parece, à primeira vista, ser o resultado de um ganho de liberdade. É por isso que não podemos dizer de forma adialética: todo esse desenvolvimento foi um erro, vamos voltar atrás, como era bom quando ainda tínhamos uma ordem clara. O que podemos dizer apesar de tudo é que motivos como flexibilidade, espontaneidade, originalidade e diferença, que um dia foram a promessa de um ganho em termos de liberdade, hoje estão de tal modo ligados a um formato atual do capitalismo que daí surgiram novas formas de alienação.
O fato é que se registra nas sociedades capitalistas desenvolvidas do Ocidente um aumento dramático dos transtornos de personalidade depressivos no sentido mais amplo do termo. Esse é um dos assuntos tratados no livro La Fatigue d’être soi (A fadiga de ser você mesmo, em tradução livre), de Alain Ehrenberg. Além disso, há o fenômeno do burnout, que Sighard Neckel e Greta Wagner interpretaram sociologicamente em um diagnóstico semelhante ao dos dias atuais. De qualquer forma, fenômenos como vazio interior, sentimento de inferioridade, desânimo e sensação de fadiga profunda parecem ser a face oposta da expectativa de que os indivíduos se realizem de forma flexível e criativa – independentemente de suas condições sociais e realidades sociais concretas.
A crítica do Romantismo de Hegel pode ter sido injusta com os românticos, mas penso que sua crítica a um conceito excessivamente abstrato de liberdade realmente acerta em certos aspectos da compreensão neoliberalmente distorcida da liberdade, segundo a qual os indivíduos devem poder levar sua vida de forma “livre” – independentemente de suas respectivas condições sociais. Essa compreensão da liberdade é, em si, contraditória, na medida em que abstrai completamente as condições sociais das quais, na verdade, ninguém pode de fato se desligar. O fracasso é de certa forma inevitável quando tentamos corresponder ao postulado de infinitas possibilidades em uma realidade concreta com restrições reais. Dentro desse complexo ideológico – como poderíamos resumir o deslocamento dos problemas de acordo com Ehrenberg –, os indivíduos não têm mais o problema de Édipo, que entra em conflito com a lei paterna (e sua atribuição rígida de papéis), mas o problema de Narciso, que sucumbe a uma imagem demasiadamente idealizada de si mesmo.
Em toda teoria crítica da sociedade deve existir como contraponto um conceito de “autonomia real” ou mesmo de “emancipação real” – em oposição a formas falsas, que, na verdade, são formas de autoalienação. Mas a questão a ser colocada a toda teoria crítica é: há pontos de partida, já hoje, para essa real autodeterminação também na sociedade contemporânea, ou – e esta seria a posição de Adorno – tais pontos de partida não podem existir, porque a sociedade como um todo é um contexto ilusório? Onde estaria o potencial para dar início a essa emancipação?
Não acredito que seja necessário pressupor um contexto ilusório total quando se critica compreensões distorcidas da realidade e suas consequências muito reais. Mas podemos dizer que o contexto ideológico esboçado é supostamente tão bem-sucedido e adota traços de um contexto ilusório, porque o discurso correspondente acredita poder se distanciar de toda ideologia – posto que se fixa no desempenho ou no fracasso dos indivíduos. Ele concede generosamente a liberdade de autorrealização aos indivíduos justamente na dimensão em que subtrai a questão das condições sociais de tal liberdade. Os antagonismos sociais não apenas são reduzidos à sua mera fatualidade, negando assim seu potencial de conflito, mas a perspectiva individualizante da pobreza e da miséria é ainda combinada com uma naturalização das diferenças produzidas pela ordem social – e esse é um processo que, como escreveu Alenka Zupančič acertadamente, tem que ser compreendido em si mesmo como um “processo ideológico-político por excelência”. Na minha opinião, o ponto de partida para a emancipação desse complexo não deveria ser procurado na antecipação de um conceito completo de liberdade, como por exemplo em um último estado de reconciliação, e sim nos já citados sintomas de crise. Na verdade, acredito que a cura já pode ocorrer se as pessoas afetadas se desligarem de um ideal exagerado do eu e reconhecerem os limites objetivos de seu poder. Esse seria certamente o primeiro passo em direção à sua possível politização.
Considero, aliás, incorreto do ponto de vista da teoria da liberdade presumir um estado final de reconciliação, pois essa é uma suposição que desliga da história a experiência da liberdade. Mas é preciso pensar a liberdade historicamente, de forma que sua própria historicidade penetre no próprio conceito de liberdade, ou seja, que a mutabilidade histórica de nossas concepções de uma vida autodeterminada possa ser compreendida por si mesma como parte de nossa liberdade de autodeterminação. Nesse contexto, eu defenderia também momentos de liberdade da esfera social como momentos nos quais nos distanciamos de nossa própria socialização, de nossas próprias autocompreensões, para nos apreendermos a partir dessa distância de nós mesmos – de novo na esfera social. Essa é uma definição de liberdade que busca abranger a tensão produtiva entre os polos de uma liberdade da e na esfera social.
Essa tensão permeia a vida dos indivíduos também porque eles são seres finitos e suas autodeterminações são, portanto, inevitavelmente falíveis: à luz de novas experiências, nossa relação conosco e com o mundo pode se mostrar falsa ou limitada, não mais correta, tornando necessário um ajuste. Tal concepção de liberdade, que defende o movimento duplo da liberdade entre a liberdade da e a liberdade na esfera social – e também sua historicidade –, é por esse motivo muito diferente da liberdade infinita no mau sentido, que totaliza a liberdade do social e faz dela o modelo da liberdade. A alienação a que a última conduz não é apenas uma alienação do social e da própria pessoa como agente, mas ao mesmo tempo também da própria historicidade.
No entanto, uma compreensão de liberdade que articule ambos os polos, o da liberdade da esfera social e o da liberdade na esfera social, conduzirá a atenção, entre outros, para o fato de que experiências de alienação em relação às autoimagens apoiadas no social podem ser utilizadas para a libertação em relação a essas mesmas imagens – isto é, podem ser um motor de mudança não apenas da compreensão de si mesmo, mas também do contexto social em que ela deve ser experimentada. Isso valia para os velhos e estáticos padrões de comportamento dos anos 1950, mas vale também para o ideal da autorrealização eternamente flexível e criativa que abstrai erroneamente o indivíduo da sociedade.
Perguntando concretamente: como podemos nos “ressocializar”? Como podemos recuperar essa dimensão de comunidade na esfera social?
Tenho uma certa esperança, baseada no esclarecimento, na força da crítica, onde quer que ela ocorra, seja na universidade ou na esfera pública, em jornais ou revistas. Acredito que alertar as pessoas para o fato de que os problemas que elas têm enquanto indivíduos não ocorrem de fato isoladamente, mas que eles têm uma base social, já traz benefícios.
Provavelmente não me engano ao presumir que você não considera as mídias sociais um lugar que, devido a suas estruturas, proporcione vias para a emancipação. Ou haveria uma possibilidade de aproveitar para esse fim a reestruturação da esfera pública associada às mídias sociais?
Uma resposta bem genérica: as tecnologias nunca são em si boas ou ruins. Sempre depende de sua utilização. Mas então precisamos falar sobre os formatos e as empresas por trás delas, pois são elas que organizam a esfera social das redes sociais de determinadas formas (para as quais certamente é possível imaginar alternativas). Em face do contexto descrito, o Facebook, por exemplo, me parece ser mais uma parte do problema do que uma parte da solução.
Em seu trabalho de conclusão, uma de minhas estudantes descreveu como ela utiliza o Facebook: como uma espécie de diário. Há algo aí, realmente pode-se ver como os sujeitos flexíveis mantêm-se coesos através de sua permanente autodocumentação, que tem também aqui uma função estabilizadora. No entanto, mesmo essa autodocumentação passa por uma elaboração constante; a história do próprio ser é, portanto, também constantemente otimizada, adaptada, reescrita. Também porque a representação do próprio eu que serve à própria autocompreensão é aqui diferente do que em um diário, ocorrendo sob os olhos da esfera semipública dos amigos de Facebook, a qual codetermina latentemente o que é ou não representado.
Naturalmente também se pode utilizar o Facebook de maneira diferente. Mas temo ser pouco otimista em relação ao potencial dessa forma de esfera pública. Acredito que aqui muita atenção é desviada para dentro de bolhas em que se encontram pessoas que de qualquer forma se encontram permanentemente em suas próprias camadas sociais.
Na cultura do consumo enquanto “economia das curtidas”, a diferença articula-se apenas como conectividade.
Em primeira linha, o Facebook tem um interesse que aparenta ser neutro: manter seus usuários pelo maior período de tempo possível em suas páginas. Isso funciona tanto com a semelhança quanto com a diferença – desde que a semelhança não aborreça e a diferença não provoque a ruptura da comunicação. Com certeza não se trata, portanto, de diferença radical, mas de modulação. Nesse sentido, eu concordaria com a tese da bolha de filtro que você citou anteriormente: o que se busca e produz nas mídias sociais é, na melhor das hipóteses, um desvio moderado das respectivas opiniões e ambientes. Mas isso não me parece especialmente específico das mídias sociais: em geral, as pessoas buscam apenas muito raramente a diferença radical em relação a si mesmas, mesmo em outras mídias ou em sua vida cotidiana. Em comparação, o problema da bolha de filtro é talvez – pelo menos alguns estudos indicam isso – menor no Facebook que em outros contextos.
Pode ser. No entanto, o Facebook não substitui um discurso público em que somos confrontados com diferenças que não buscamos por nós mesmos e que também não são buscadas para nós de acordo com critérios de semelhança
Sob a perspectiva da teoria da democracia, deveríamos defender uma compreensão da autodeterminação à luz de sua falibilidade.
Claro que não devemos jogar a toalha! Por que deveríamos? Mas, por outro lado, não penso que, para isso, precisemos de uma utopia imaginada de vida bem-sucedida, se foi isso que você quis expressar com um conceito positivo de liberdade e emancipação. Pelo contrário, acho que sob a perspetiva da teoria da democracia, deveríamos defender uma compreensão da autodeterminação à luz de sua falibilidade. Contra os novos fundamentalismos com suas demandas exageradas de identidade e contra o neoliberalismo com suas demandas exageradas de flexibilidade. Na medida em que o primeiro tende a negar a mutabilidade das relações do eu e do mundo, e o outro nega a necessidade de sua concreção social, ambos suprimem a dimensão histórica da liberdade. Eu diria que o fato de conceder espaço a essa dimensão não é a característica mais insignificante das sociedades democráticas – desde que elas sejam dignas dessa designação (e não da de pós-democracia).
Para abrir uma perspectiva política de uma alternativa à alternativa de direita ao neoliberalismo, precisamos certamente admitir, para começar, que existe uma conexão entre o neoliberalismo e a guinada à direita – pelo menos na Alemanha, na França e nos Estados Unidos; essa guinada deve ser compreendida também como uma reação àquele. Portanto, na medida do possível, não deveríamos esquecer as percepções da crítica ao mesmo. Não se avança apesar da crítica, mas com ela.
Você vê dentro da sociedade, que você descreve como crítica e até sombria, lugares onde a liberdade possa ser experimentada, digamos, isenta de alienação? Afinal há respostas clássicas a essa questão: no amor, portanto numa esfera privada, ou na arte…
A autodeterminação continua sendo uma missão nas esferas privada e política, já pelo fato de sermos seres finitos. Justamente por isso é que se pode levantar a questão normativa a respeito do bem individual e/ou social, a questão da autodeterminação. Apenas porque os indivíduos no intercâmbio vivo com o mundo podem chegar a uma diferença em relação a si mesmos, isto é, a seus respectivos papéis como participantes de uma prática social, é que eles podem se comportar de maneira crítica ou afirmativa em relação a eles. Em outras palavras, a experiência de tal diferença é uma condição para uma apropriação ou modificação autodeterminada da prática que sempre nos determina. Mas ela própria não é equivalente à liberdade ou a um estado de não alienação.
Abril de 2018