A “Década dos Oceanos” da ONU  O futuro dos oceanos

Se o mar tivesse varandas, 2017
Se o mar tivesse varandas, 2017 © Aline Motta

Os oceanos são fonte de alimentos, determinam as condições meteorológicas e influenciam o clima. Sem que sejam protegidos, nosso desenvolvimento sustentável não será viável, nem mesmo em terra firme. Em entrevista, o oceanógrafo Martin Visbeck fala sobre o fascínio que os oceanos despertam, seu significado para nossa vida e a busca urgente de soluções sistêmicas durante a Década dos Oceanos da ONU.

O que você acha de tão fascinante nos oceanos, que são também o cerne de seu trabalho científico?

Embora eu tenha crescido na Charneca de Lüneburg, ou seja, muito longe do mar, o oceano sempre me fascinou. Nos tempos de escola, sempre gostei de navegar, mais tarde passei a praticar o surfe. Após viagens de barco pelo Atlântico e pelo Pacífico, ficou claro que a paixão pelo mar está profundamente enraizada em mim. Esse entusiasmo acabou me levando, por fim, à pesquisa marinha.

A Década dos Oceanos da ONU acontece de 2021 a 2030, um projeto no qual você está muito envolvido. Por que a ONU lançou essa iniciativa de longo prazo?

A Década dos Oceanos da ONU fomenta a pesquisa e a cooperação internacional, a fim de analisar os desafios e as oportunidades que os oceanos apresentam. O lema central das Nações Unidas, Leaving nobody behind (Não deixando ninguém para trás), reflete a intenção de envolver todos os países e todas as comunidades, sobretudo as regiões com menos recursos. Através da troca de conhecimento entre Norte e Sul, a iniciativa vai identificar e promover formas de desenvolvimento sustentável.

Qual o papel das Ilhas Fiji e de Kiribati, que são profundamente dependentes do mar?

Pequenos países insulares veem o oceano muitas vezes como espaço econômico. Por isso, é comum que apostem mais no uso do oceano do que na sua proteção. O desafio está em combinar esses dois aspectos: como podemos utilizar o oceano de forma sustentável e protegê-lo ao mesmo tempo? Essas regiões enfrentam dilemas especiais em termos de tomada de decisões, que precisamos considerar em esfera global. É importante ir além das questões ambientais tradicionais, tais como a pesca excessiva, a poluição e as mudanças climáticas. Esse campo de tensão, ou seja, esse conflito entre proteção e uso, é exatamente o que está no centro dos debates da Década dos Oceanos da ONU.

Na sua opinião, quais são as maiores lacunas de conhecimento no contexto da pesquisa oceanográfica?

As maiores lacunas estão relacionadas às profundezas abaixo de 100 metros. Apesar dos avanços tecnológicos que fornecem dados de superfície, o interior do oceano, inclusive o fundo do mar, permanece em grande parte inexplorado, pois essas profundezas são de difícil acesso. No entanto, a maior parte do uso do oceano pelo ser humano ocorre na região litorânea, que é muito mais acessível. O desafio é incentivar práticas sustentáveis, combater a poluição proveniente da terra e evitar a pesca excessiva. A Década tem como objetivo pesquisar alternativas mais sustentáveis de alimentação, como mariscos e algas, e, ao mesmo tempo, estabelecer uma governança oceânica eficaz para minimizar a exploração descontrolada.

Em terra, não podemos construir ou fazer uso de áreas aráveis em qualquer lugar. Qual é a situação no mar? Há regras que determinam onde a pesca é permitida ou onde é possível fazer obras, a fim de proteger a vida marítima e, ao mesmo tempo, fomentar o uso sustentável dos oceanos?

No mar, geralmente falta uma regulamentação estruturada desse tipo. Somente as regras conhecidas como “Marine Spatial Planning”, ou seja, Planejamento Espacial Marinho, nos ajudam a usar e a proteger o mar de forma sustentável. O ponto crucial da questão é que, muitas vezes, não dispomos de dados necessários para estabelecer essas regras corretamente. Em comparação com a pesquisa atmosférica, em que instituições governamentais fazem previsões meteorológicas, ainda não estamos tão avançados no mar e aceitamos com frequência dados incompletos, o que leva a decisões menos otimizadas.

O que há de especial na Década dos Oceanos da ONU?

A Década dos Oceanos da ONU tenta abordar os oceanos em sua totalidade, e não apenas aspectos avulsos como a questão climática ou a poluição. Essa abordagem sistêmica nos ajuda a entender melhor o oceano e a protegê-lo. Através do trabalho de chamados gêmeos digitais do oceano, no qual estou trabalhando, podemos reproduzir cenários hipotéticos e planejar melhor como podemos usar e proteger o oceano. Espero que, através dessas abordagens, aumente também a motivação para observar e entender melhor os oceanos –  e que, assim, seja possível se aproximar um pouco mais desse sistema vasto e interconectado. É claro que nenhum país, nenhuma instituição de pesquisa ou universidade pode fazer isso por conta própria. Trata-se de algo que só pode ser feito em esfera global e, para isso, precisamos da Década dos Oceanos.

Deixando de lado questões mais genéricas e olhando concretamente para destaques específicos da Década dos Oceanos, como por exemplo as conferências em Barcelona e Atenas em abril de 2024: o que esses eventos abordam?

A Década dos Oceanos da ONU começou em 2021, em meio à pandemia. A princípio, a conferência inaugural deveria acontecer em Berlim, mas acabou sendo realizada virtualmente. A Década prevê sete resultados e dez metas, para os quais estão sendo conduzidos 80 programas globais e quase 300 projetos em todo o mundo. A reunião de representantes desses programas e projetos em Barcelona tem por fim avaliar o progresso da iniciativa até o momento, discutir desafios comuns e aumentar a visibilidade da Década.

Tendo em vista 2030 – o ano no qual a Década dos Oceanos da ONU chega ao fim: como você vê o futuro da pesquisa marinha, sobretudo no que diz respeito às medidas políticas e recomendações de conduta?

Nossa meta é conseguir até o ano de 2030 uma mudança de pensamento entre os países situados em regiões litorâneas. Isso significa sobretudo reconhecer que o mar não é um recurso inesgotável, mas sim um recurso limitado que precisa ser administrado adequadamente, da mesma forma que a terra. Imagine se tentássemos reduzir os acidentes simplesmente proibindo o uso de bicicletas! Isso não resolveria o problema real do transporte, não é mesmo? Precisamos de uma abordagem em sua totalidade. Além disso, nos esforçamos para conscientizar todas as pessoas sobre a importância do mar para todos. Muita gente não tem consciência de quanto o oceano é fundamental para a nossa subsistência: 95% dos produtos comercializados circulam por vias marítimas e 98% da internet percorre cabos oceânicos. Portanto, lutamos pelo letramento oceânico, ou seja, por um entendimento básico das várias dimensões do oceano e de sua importância para nossas vidas. Essa compreensão cria o fundamento para decisões políticas que servem para proteger o oceano e reafirmar sua relevância.

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