A poeta colombiana reflete sobre os valores do afrofeminismo e sobre o papel de sua identidade em seu trabalho como escritora.
Como as identidades não são um status fixo desde o início, mas definem-se através do encontro e das relações com outras identidades – em meio a cenários de conflito, luta e negociações, onde são discutidas as definições e ações políticas dos grupos sociais –, assumo minha própria identidade como um fenômeno de fronteira, resultado de relações e transformações. É desta maneira que pertenço a uma coletividade de mulheres descendentes da Diáspora Africana na Colômbia, uma Diáspora que nasceu da negação e do esquecimento, que gerou silêncios e que foi definida através da percepção internalizada da alteridade.Por isso, meu ofício de escrever, de poetizar, precisou de muita coragem. Especialmente porque o que decidimos foi reunir os retalhos da herança africana espalhados durante séculos de tristezas e solidão, resgatar a memória do desterro social e do estigma do nada. O poeta português Fernando Pessoa dizia que: “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”. Do mesmo modo, para mim a escrita é a respiração indispensável na minha busca existencial. É assim, porque considero que o verso, a palavra ou a frase estão intimamente ligados às pulsações cardíacas. Por isso, a cadência – essa série de sons que se repetem de modo regular ou mensurado, como o movimento das mulheres caribenhas quando caminham – é o que tenciono reunir em minha poesia através da combinação de ênfases, repetições, combinações, pausas e/ou cortes. Escrevo em “pulsações”, à maneira do filósofo francês Lyotard. Procuro fazer com que o ritmo do texto se movimente como a música, assim como o manifesto em minha poesia:
Semeia teu poema-tambor com as unhas. / Derrama nele água do mar ou água de mel. / Unte-o com pólen, com açúcar queimado ou com o sal materno da terra /para que a casca úmida de suas metáforas, / onde está depositada a seiva que nutre o tronco do baobá, / se torne dura e lenhosa como a pele da mandioca. / Deposita um bosque de palavras renascentes a seus ciclos agrícolas, / e não se esqueça de tecer-lhe acordes de comunicação / em algum ponto de partida entre a linguagem sagrada e as zonas cósmicas, / onde habita o coração vivo dos ancestrais-raízes. “Semeia teu poema-tambor”
[Siembra tu poema-tambor con las uñas. / Derrámale agua de mar o agua de miel. / Úntalo de polen, de azúcar quemada o de la sal materna de la tierra / para que la cáscara húmeda de sus metáforas, / donde está depositada la savia que nutre el tronco del baobab, / se vuelva dura y leñosa como la piel de la yuca. / Deposita un bosque de palabras renacientes a sus ciclos agrícolas, / y no olvides tejerle acordes de comunicación / en algún punto de partida entre el lenguaje sagrado y las zonas cósmicas, / donde habita el corazón viviente de los ancestros-raíces. (“Siembra tu poema-tambor”)]
Ao mesmo tempo, em minhas preocupações literárias, pretendo enriquecer os discursos literários da Diáspora Africana através de uma perspectiva de gênero. Isto implica em levar a cabo uma ruptura importante. Ela me permite revisitar e questionar o caráter masculinista das ideologias dominantes, colocando no centro as histórias de mulheres e as perspectivas feministas, reconhecendo a importância do gênero e a diferença sexual.
Em geral, a poesia escrita por mulheres tem sido marginalizada, invisibilizada e muito pouco estudada. E, nos casos em que foi estudada, isso foi feito a partir da visão patriarcal do mundo. Chegou-se ao ponto de não se conceber que existe um tipo de consciência literária afrofeminina, que fala da reinvenção das escritas e subjetividades plurais, históricas, políticas e culturais das mulheres descendentes da diáspora africana.
Com minha escrita afrofeminina, assumo o desafio de construir-me a mim mesma e por mim mesma através da voz sensível e pensante. Através do poder da palavra emocional, esta voz se torna política e procura promover uma fissura, uma mudança de paradigma da cultura patriarcal por meio do conceito da criação poética como um ato de exploração dos labirintos da imaginação, de potencialização da linguagem, de leitura crítica da obra em seu contexto local, nacional, histórico e social:
[…] E acaso não sou uma mulher-negra? / eu fui a que assassinaram e atiraram ao ultraje dos abutres / – e não morreu –. / Encontrei minhas origens entre os velhos arquivos de livros / na conjuração ritualística do mar / nos cantos espirituais de caves / nas toadas crespas do tambor / nas contendas de minha alma. / Ali me reinventei, / renascendo em meu umbigo […] Nasce a sibila… / podem chamar-me de bruxa com rimas e com razões… / Eu falo na língua amputada de minhas ancestrais, / elas são o fundamento tecido que abraça a úmida rede de minhas palavras. / Enquanto a santa inquisição interrogou a negrura milenária de seus corpos-letras, / em minha sombra de vigílias convoquei / seus épicos, seus orgânicos nomes, seus nomes de lança […] Agora a garganta de minha voz. / afogada no naufrágio dos remos, / faz estalar as pedras.
[(…) ¿Y acaso no soy una mujer-negra? / yo fui la que asesinaron, y arrojaron al ultraje de los buitres / –y no murió–. / Encontré mis orígenes entre los viejos archivos de libros / en la conjuración ritualista del mar / en los cantos espirituales de bodegas / en las tonadas encrespadas de tambor / en las contiendas de mi alma. / Allí me reinventé, / renaciendo en mi ombligo (…) Nace la sibila… / pueden llamarme bruja con rimas y con razones… / Yo hablo en la lengua amputada de mis ancestras, / ellas son el fundamento telar que abraza la húmeda red de mis palabras. / Mientras la santa inquisición interrogó la negrura milenaria de sus cuerpos-letras, / en mi sombra de vigilias he convocado / sus épicos, sus orgánicos nombres, sus nombres de lanza […] Ahora la garganta de mi voz, / ahogada en el naufragio de los remos, / hace estallar las piedras.]
Outubro de 2019