Como as nações africanas contribuíram para a democratização do esporte mundial e combateram a exclusão na busca de liberdade e igualdade? O escritor queniano Oyunga Pala rastreia a introdução e o desenvolvimento do esporte como um catalisador para a democracia na África.
O esporte é frequentemente enaltecido como metáfora dos valores e princípios dos ideais democráticos na sociedade. De fato, em muitos aspectos, isso é verdade. No esporte, há inclusão e igualdade, liberdade de reunião e associação, diversidade, tolerância, responsabilidade e concordância entre atletas e espectadores quanto à necessidade de cumprir as regras. Os eventos esportivos globais são organizados dentro da estrutura das práticas democráticas. Enquanto o espírito olímpico evoca ideais de fair play, tolerância, respeito, integridade e democracia, é fácil esquecer os esforços dos pioneiros que lutaram contra o racismo e a segregação para garantir os ganhos que celebramos atualmente no esporte.Quando as potências imperiais introduziram as culturas esportivas ocidentais durante a colonização da África, elas não tinham necessariamente em mente a disseminação dos princípios democráticos. Em todas as colônias, o esporte era usado para aculturação. No meu país natal, o Quênia, os britânicos empregaram o esporte como princípio central da missão civilizadora. O esporte era uma ferramenta eficaz do imperialismo, usada para assimilar e transformar os colonizados em súditos da coroa e para reforçar as hierarquias raciais. Esportes não ocidentais, como luta livre e luta com bastões, foram sistematicamente erradicados para abrir espaço para a cultura esportiva ocidental como um farol de civilização.
No Quênia, os britânicos introduziram um sistema educacional tripartite para europeus, asiáticos e africanos e institucionalizaram o esporte no processo de assimilação. Posteriormente, o sistema colonial de classes consolidou-se, levando à rápida criação de novas formações de classes africanas que perturbaram a ordem social tradicional preexistente.
O futebol e o atletismo evoluíram para a condição de esportes de massa na África, particularmente em colônias que não tinham uma presença significativa de administradores coloniais. Eles eram de fácil estabelecimento e não envolviam aspectos técnicos. A africanização do futebol foi um fenômeno generalizado na década de 1930 com a formação de clubes locais que serviram como espaços para galvanizar identidades étnicas e nacionais.
Esporte para a elite
No entanto, nas colônias que atraíram um número significativo de membros das classes altas britânicas, como África do Sul, Quênia, Uganda e as duas Rodésias (Zimbábue e Zâmbia), a introdução dos “esportes de cavalheiros”, como críquete, rúgbi e tênis, anunciou o surgimento de uma elite africana educada.Os jogadores pioneiros de rúgbi no Quênia eram filhos de líderes tribais e administradores que trabalhavam para a colônia. Essa admissão seletiva de estudantes em escolas que anteriormente só aceitavam brancos no Quênia, no início dos anos 1960, abriu caminho para equipes inter-raciais de rúgbi. O Strathmore College abriu suas portas em Nairóbi e foi pioneiro no rúgbi multirracial em 1961. O historiador do rúgbi da África Oriental Paul Okongó lembra que o jornal Daily Nation relatou esse contexto como “um experimento no campo do rúgbi”. A notícia reverberou no sul do continente, com o jornal Johannesburg Star descrevendo a tentativa de rúgbi multirracial como “um estudo em rúgbi preto e branco”.
Jogar rúgbi, críquete ou tênis garantiu a um seleto grupo de africanos o privilégio de associação com as classes dominantes e a entrada na nova estrutura de classes, mesmo diante dos acenos de independência. Essa engenharia social foi eficaz, e mais africanos começaram a aspirar o ingresso em escolas que antes eram predominantemente brancas como caminho para uma nova identidade de classe.
No início dos anos 1960, uma onda de independência varreu a África. Um total de 28 ex-colônias tornaram-se independentes até 1964 e começaram a se reunir em torno de identidades nacionais e pan-africanas, levantando uma voz unificada para exigir um lugar digno na comunidade internacional. Esse coletivo de nações africanas recém-independentes afirmou sua autonomia através da organização e participação nos primeiros Jogos Pan-Africanos, realizados em Congo-Brazzaville no ano de 1965.
Em 1968, essas jovens nações começaram a usar seus números para desafiar o regime do Apartheid na África do Sul. Em 1956, o governo do Apartheid da África do Sul legalizou a segregação nos esportes, banindo efetivamente as atividades esportivas inter-raciais e selecionando a partir de então apenas atletas brancos para representar o país em eventos internacionais. O Comitê Olímpico Internacional convidou a África do Sul para os Jogos Olímpicos de 1968 no México, após um relatório que afirmava que reformas haviam sido iniciadas para que o país alcançasse uma política multirracial na formação de equipes. O convite foi recebido com repúdio e 31 Estados africanos ameaçaram boicotar as Olimpíadas caso a África do Sul fosse incluída. Essa pressão consolidada valeu a pena, e o regime do Apartheid na África do Sul foi excluído dos Jogos Olímpicos pelas duas décadas seguintes, o que marcou um ponto de virada crucial na busca de liberdade e democracia.
Democratização do esporte
Esses momentos de solidariedade por parte das nações africanas desempenharam um papel importante na decolonização, transformação e democratização da governança de eventos esportivos internacionais. Portanto, foi um momento de triunfo quando Nelson Mandela, o primeiro presidente de uma África do Sul recém-independente, vestiu uma camisa dos Springboks durante a final da Copa do Mundo de Rúgbi de 1995 para anunciar as aspirações de uma nação arco-íris unificada e democrática. Em 2019, uma equipe multirracial dos Springboks levantou o troféu da Copa do Mundo de Rúgbi pela segunda vez, tendo Siya Kolisi como seu primeiro capitão negro.As nações africanas também deram uma imensa contribuição para a democratização do futebol mundial. O esporte foi dominado por nações europeias e sul-americanas até o surgimento de nações africanas independentes nos anos 1960. A África do Sul tornou-se o primeiro país africano a sediar com sucesso uma Copa do Mundo de futebol, em 2010. A recente campanha dos sonhos da equipe de Marrocos na Copa do Mundo do Catar e sua conquista como primeira nação africana a chegar às semifinais é uma grande promessa.
Há muito trabalho a ser feito na desconstrução das ideologias coloniais que fomentam os discursos ocidentais de supremacia e perpetuam as desigualdades no mundo. A democracia tem a ver com as pessoas, e a história do esporte é a história de pessoas marginalizadas que lutam pelos direitos humanos, pela igualdade, pelo respeito e pela dignidade. De Muhammad Ali a Colin Kaepernick, de Arthur Ashe às irmãs William, devemos continuar a celebrar atletas que foram contra a corrente e usaram seu privilégio para lutar por um mundo mais justo e melhor.
Março de 2023