Conhecida pelas vastas plantações de abacate, a região de Petorca, no Chile, sofre com a grande seca que assola o país há mais de uma década. Para especialistas e ambientalistas, as mudanças climáticas não são a única razão para a falta de água na região.
Avocado toasts, smoothies, guacamoles, manteigas e até mesmo a versão frita: nas redes sociais, o abacate rouba a cena nas mais variadas receitas. A popularidade virtual deste “superalimento” reflete o atual boom do consumo: até 2030, ele será a segunda fruta tropical mais comercializada do mundo, ultrapassando a manga e o abacaxi e ficando atrás apenas da banana, de acordo com uma projeção da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A realidade da sua produção, porém, é bem menos glamurosa. Enquanto para alguns a visão da fruta dá água na boca, para outros, é justamente ela que falta: a água.
No Chile, o abacate – ou palta, como o fruto é chamado no país – é sinônimo de um grave problema ambiental: a escassez hídrica. A província de Petorca, região de Valparaíso, que concentra mais da metade da produção nacional de abacates, se tornou o epicentro da crise. Há mais de uma década, a comunidade enfrenta uma seca gravíssima. Onde antes havia um rio, agora só há pedra e poeira. A população sofre com a falta de água potável, bem como os pequenos agricultores.
Mil litros de água para um quilo de abacate
Enquanto isso, os verdejantes abacates da cobiçada variedade hass crescem a pleno vapor para suprir a demanda internacional, causando revolta nos ambientalistas locais. Afinal, a produção de um quilo de abacate exige em média mil litros de água, um volume seis vezes maior que o do tomate e quatro vezes maior que o da batata, segundo a organização Water Footprint Network. Uma pessoa, por sua vez, precisa de algo entre 50 e 100 litros por dia para atender às necessidades básicas de consumo e higiene, de acordo com a ONU.
“O território foi reestruturado para servir à agricultura de exportação. Agora, a população não tem acesso à água potável, e o Estado precisa providenciar água em caminhões-pipa, que têm péssima qualidade e um volume diário limitado por pessoa”, explica Aldo Madariaga, professor da Escola de Ciência Política da Universidade chilena Diego Portales. Para o acadêmico, Petorca simboliza a vitória do crescimento econômico sobre as preocupações ambientais e os direitos humanos no país andino: “Toda a água vai para os grandes produtores. Os pequenos agricultores não conseguem mais cultivar, os animais estão morrendo, os meios de sobrevivência estão se extinguindo, há menos empregos”.
Segundo o Greenpeace, o Chile sofre a maior crise hídrica do hemisfério ocidental, e a raiz do problema não está apenas na seca, mas na distribuição da água. Enquanto o agronegócio chileno defende a importância econômica do abacate, movimentos que lutam pelo acesso à água em Valparaíso, como o Modatima, denunciam o que consideram “roubo” da água pelos grandes produtores em conluio com políticos. O conflito na região intensificou-se a ponto de, em 2018, a Anistia Internacional lançar uma campanha para pedir proteção ao ativista Rodrigo Mundaca, que vinha sofrendo ameaças de morte. No ano passado, ele foi eleito governador de Valparaíso.
O mercado regula a distribuição de água
Ao contrário do que ocorre no resto do mundo, no Chile a água obedece às leis do mercado. Sob o Código de Águas de 1981, elaborado durante a ditadura de Augusto Pinochet, indivíduos e empresas podem adquirir gratuitamente do governo “direitos vitalícios sobre a água”. Os proprietários desses direitos podem extrair determinado volume de água dos rios e explorá-la comercialmente. “A ideia de que o mercado era melhor que o Estado na alocação de recursos teve o pior resultado possível. Agora, falta água não só porque os produtores estão armazenando, mas também devido ao aquecimento global. Esta não é uma boa solução para o século 21”, opina Madariaga. “O sistema não leva em conta que os recursos hídricos são limitados”.
Na prática, explica Maria Christina Fragkou, professora do Departamento de Geografia da Universidade do Chile, o sistema chileno de águas concede gratuitamente a exploração do recurso às grandes companhias mineradoras e agrícolas, como os produtores de abacate em Petorca: “O Estado chileno sempre priorizou garantir a água para a produção. E as soluções oferecidas para o consumo humano sempre foram precárias e custosas. As medidas que deveriam ser de emergência, como os caminhões-pipa, vêm sendo executadas há décadas. Para mim, Petorca é o futuro. É o que todos no Chile vão viver nos próximos 20 anos”, prevê.
Mudanças radicais na gestão dos recursos hídricos estavam entre as propostas da nova Constituição chilena, elaborada em resposta às manifestações de 2019, quando milhares de pessoas tomaram as ruas do país para reivindicar justiça social. “Na Nova Constituição, o Estado poderia revogar, cancelar ou pausar as concessões da água. Assim, se houvesse uma megasseca, o Estado poderia pausar os direitos à água das companhias mineradoras com a justificativa de preservá-la para o consumo humano ou para fins ecológicos”, explica Fragkou. A Carta, porém, foi rejeitada pela maioria da população em um plebiscito de setembro de 2022. “Houve bastante lobby das mineradoras e produtoras agrícolas, porque elas não querem perder os privilégios que têm hoje”, completa.
Dieta global?
Sete em cada dez abacates produzidos no Chile são exportados. Em 2020, os principais países importadores foram a Holanda e o Reino Unido. O fruto, originário das Américas, hoje faz parte do cardápio nos cinco continentes e caiu no gosto de vegetarianos, veganos e flexitarianos do mundo todo. Segundo a brasileira Ailin Aleixo, que atua como crítica de gastronomia, a moda do abacate começa a surgir a partir dos anos 2000, à medida que cresce a popularidade da dieta Atkins, que prioriza a ingestão de gorduras e proteínas em detrimento de carboidratos. Por ser rico em gorduras monoinsaturadas, fibras e vitaminas, o abacate é altamente recomendado para quem quer emagrecer.
“A gente glamouriza alimentos que são vendidos como remédios, mas não existe milagre, seja no caso do goji berry, do açaí ou do abacate. Isso é uma falácia”, diz Aleixo. Segundo ela, as próprias características físicas da variedade hass contribuíram para seu sucesso internacional: é pequena, fácil de transportar e serve uma única pessoa. A alimentação, porém, deveria ser cada vez mais local e biodiversa, ao contrário do que ocorre no planeta.
“A comida virou commodity, e seu lado nutricional e cultural foi esquecido. Não dá para o mundo inteiro comer a quinoa dos Andes. A monocultura está na contramão da alimentação sustentável”, diz a especialista. “A gente quer um abacate que já venha na dose certa para quem estiver lá no café hipster de Tóquio ou São Francisco cortar e fazer seu avocado toast. É uma mentalidade de padronização”, acrescenta com ironia.
E a demanda pelo abacate, ressalta Aleixo, foi criada artificialmente. “No caso dos alimentos tropicais, que só algumas partes do planeta conseguem produzir, coloca-se uma pressão muito grande nessas regiões. Está acontecendo no Chile, e já vimos no México, onde o abacate se valorizou tanto a ponto de as plantações serem dominadas pelo tráfico. É inviável a gente globalizar um ingrediente para oito bilhões de pessoas se ele não cresce em todas as partes do mundo”, conclui.
Janeiro de 2023