Por Pedro Henrique Gomes*
1989. Um carro incendiado, explodido, aos pedaços, bloqueia horizontalmente uma rua estreita. Estava morto o banqueiro Alfreld Herrhausen.
1993. Uma estação de trem paralisada por uma troca de tiros e um corpo que cai nos trilhos após um tiro na cabeça. Estava morto o militante político Wolfgang Grams.
As imagens que somos levados a construir a partir dos escombros desses dois episódios e os relatos que tentam fornecer explicações e contexto aos seus desdobramentos prévios e posteriores constituem a conflituosa experiência que é assistir Black Box BRD (2001). O filme nos dá um território duro sobre o qual avançar e o percurso de sua trama não é nada simples, ao contrário do que parece indicar uma leitura ligeira de sua sinopse. As fotografias desses lugares, lugares de mortes, somadas aos poucos entrevistados que o filme convoca para narrar as duas mortes são insuficientes para preencher um cenário político cheio de engrenagens sutis e pormenores que não se esgotariam em cinebiografias.
A simples oposição, em síntese grosseira, do então presidente de um grande banco com um militante político radical daria conta no máximo de uma grande reportagem jornalística. A sorte do espectador é que o documentário de Andres Veiel olha para muitos lados para construir seus sentidos e mapear um território complexo, repleto de tensões e violências de toda sorte e que o filme insiste em provocar. Costurando entrevistas com imagens de arquivo da época, o filme de Veiel não opõe, simplesmente, duas histórias de vida antagônicas na esfera pública alemã, tampouco cai num embate de narrativas ideológicas do senso comum. Grams, integrante do grupo Fração do Exército Vermelho (RAF), e Herrhausen, então presidente do Deutsche Bank, têm suas histórias de vida atravessadas pelo contexto, e não o contrário – não se trata de um filme sobre suas biografias, mas em torno de disputas concretas, tensões sociais reais que não começam e não se encerram com eles. Mas por mais que o rigor da análise nos convoque a evitar reduções banais, não pode haver receio em afirmar o óbvio: o que parece interessar mais a Veiel é a luta de classes, mas não qualquer uma e certamente não de qualquer jeito.
Para isso, é preciso sair de um lugar de polarizações, deslocar as expectativas para um espaço capaz de costurar várias camadas, colocando-se adiante de simples oposições. O filme faz isso e, ao espectador, é esperado o mesmo movimento de pensamento. Ora, Black Box BRD não é um filme sobre “ouvir os dois lados”, mas antes sobre explorar as contradições circulantes, os conflitos econômico-políticos e sociais que tensionavam a sociedade alemã de então. Sua estrutura e amarração de montagem evidenciam que esses conflitos não se fecham nos personagens que têm suas vidas narradas e reconstruídas pelos depoentes, tampouco na exploração de paradoxos discursivos que aqui e ali transbordam nas falas do conjunto de entrevistados.
O filme de Andres Veiel remexe em texturas finas, bagunçadas em meio a dinâmicas políticas muito particulares e, sob a luz da história, dinamitadas nas mais variadas formas de violência política que os anos 1970/80 foram capazes de expressar. Violência que o filme quer saber o que é sem a condenar de antemão, quer entender suas fundamentações elementares (e nesse sentido sua radicalidade), sua forma, sua estética, mas também seus efeitos definitivos na sociabilidade alemã e na própria continuidade dos embates ideológicos que permanecem latentes para os que ficaram. Ele trata, portanto, fundamentalmente de uma estrutura política e de pactos sociais rompidos e volta e meia remendados pelas forças em luta.
A morte do banqueiro Alfred Herrhausen em um atentado a bomba no carro onde estava, em novembro de 1989 na cidade de Bad Homburg vor der Höhe, detonou uma investigação que se arrastaria anos a fio, culminando na divulgação, pelo próprio RAF, da autoria do assassinato. Wolfgang Grams, integrante do RAF, aparecia então como um dos principais suspeitos. Grams morreria quatro anos depois, em junho de 1993, após uma troca de tiros com policiais em uma estação de trem no município de Bad Kleinein, no distrito de Nordwestmecklenburg.
A mobilização de grupos políticos e a tensão social alemã persistente entre as décadas seguintes ao final da Segunda Guerra e antes da Queda do Muro seria tema e pano de fundo de outro grande filme de Veiel. A fascinação com que Se Não Nós, Quem? (2011) olha para os anos 1960 e narra histórias de integrantes do Grupo Baader Meinhof (como também o RAF era chamado em referência a dois de seus mais proeminentes membros) denota o interesse do cineasta em percorrer o terreno poroso dos filmes políticos, mas sempre consciente das dificuldades que a mecânica dos discursos pode impregnar neles, esvaziando-os. Veiel parece encontrar, entre o relato apaixonado do filme de ficção militante e a polidez alquímica do filme documentário, um equilíbrio que escapa da nostalgia e de suspiros derrotistas diante das sombras e fantasmas do passado. Em seus filmes, o passado é muito vivo e sobrevive como uma espécie de memória incorrigível, mas sempre passível de releituras, de colocação sob outros pontos de observação. Tanto Se Não Nós, Quem? quanto Black Box BRD invadem estes pontos e colocam o espectador no olho do furacão das revoltas (e das paixões).
Se na ficção o imaginário revolucionário e as estratégias dos financistas podem fluir entremeadas por um amor comovente (em que a história e a política interessam tanto quanto as biografias de seus personagens), no documentário estão encravadas em entrevistas emotivas dos familiares e companheiros de Grams (aos quais não se veem removidas as aspirações e desejos de ruptura, em alguns casos inclusive renovadas) e nas observações da viúva de Herrhausen e seus ex-colegas de trabalho sobre a forma astuta com que conduzia os negócios de um dos bancos mais poderosos da Europa, mobilizando inimizades também entre os seus. Em ambos os filmes, no entanto, vibram os elementos documentais que enformam as narrativas, seus eventos históricos, seus personagens “reais”, em suma, todo um dispositivo construído para forjar filmes atravessados pelo real, mas nunca presos a ele.
As duas imagens que Black Box BRD coloca em crise perseguem mais uma intimidade ideológica colocada em crise que uma explicação motivadora para os acontecimentos narrados, e o filme conecta as entrevistas de modo a encontrar essa intimidade entre as vidas perdidas e os embates de classe para oferecer uma possibilidade de leitura aberta em meio a areia movediça dos anos anteriores e seguintes à Queda do Muro de Berlim (a morte de Herrhausen acontece menos de um mês após a derrubada do muro). É preciso então construir, através dos relatos, a história daquelas imagens que de início nos tocam apenas como fotografias fora de contexto. Imagens de mortes, imagens políticas.
*Pedro Henrique Gomes é jornalista e crítico de cinema. Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. É um dos editores do fanzine de cinema Zinematógrafo, publicação impressa distribuída em Porto Alegre.
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