Por Anelise De Carli*
Quem assiste Ulrike Ottinger sabe que já deve se preparar para permanecer por algum tempo confuso sem entender se o filme se trata de um documentário ou de um trabalho de ficção. No entanto, em Sob a Neve (Unter Schnee, 2011), a sensação chega a outro nível. A pergunta agora é: estamos diante de uma obra de cinema, dança ou teatro?
Este filme-fábula conta uma história sobre a província japonesa de Echigo (atual Niigata), no centro-norte do país, que passa boa parte do ano coberta de neve. Para conhecê-la, acompanhamos a viagem de um casal representado por dois artistas kabuki (歌舞伎), Takamasa Fujima e Kiyotsugu Fujima. Perdidos na paisagem totalmente branca que soterra as casas dos vilarejos, o casal perde o senso de orientação e já não sabe mais para qual direção do espaço caminham, nem para que direção do tempo.
Os passos do casal em lentidão transformam a dificuldade de andar sobre muitos centímetros acumulados de neve em pura graciosidade e, aos poucos, pequenas aparições se apresentam, como uma versão invernal das miragens do Saara. Enquanto fazem sua viagem temporal, vamos conhecendo personagens da província e os modos de vida da região através de filmagens documentais de habitantes e representações de lendas locais.
A caminhada dos artistas pelas diferentes cenas documentais e teatrais é uma referência direta à arte cênica kabuki. Desenvolvido no período Edo (séculos XVII a XIX), a “idade dourada” da cultura japonesa, o espetáculo kabuki é tradicionalmente apresentado em palcos que possuem uma passarela conectada (hanamichi). Essa é uma característica que permite aos artistas entrarem e saírem de cena passando lado a lado do público e fazendo com que haja pequenas falas e digressões em paralelo à cena que ocorre no palco principal.
No filme de Ottinger, o kabuki ganha seriedade. É importante ter em mente que este é um estilo de teatro popular, propositadamente exagerado, à diferença das artes de elite da sua época, minimalistas. Eis aqui o primeiro paradoxo proposto por Ottinger em mais um de seus filmes inesquecíveis: é esta, uma das formas de arte cênica mais estilizada que existe, a maneira escolhida por ela para contar sobre histórias reais. A vida levada pelos habitantes da região há tantos séculos, tão bela quanto cheia de dificuldades, de fato parece um roteiro de um filme fantástico ou de ficção.
A ideia de filmar Sob a Neve partiu, segundo Ottinger, da sua descoberta do livro Hokuetsu seppu (Contos do País da Neve), de Suzuki Bokushi. Publicado em 1835, esse atlas da neve apresenta uma série de características da cultura de Echigo. Com o preciosismo de um relojoeiro e muitas ilustrações, o livro cataloga, por exemplo, a aparência de alguns flocos de neve que caíram ali. A cultivada curiosidade de etnógrafa de Ottinger – que foi aluna de Lévi-Strauss na Sorbonne – reproduz esse esforço ao filmar pratos de comida e detalhes do cotidiano com a mesma atenção que devotamos a quadros pendurados em um museu. Um gesto digno do país de Yasujiro Ozu e seus contos de fada familiares.
Ottinger vai conduzindo nossa atenção, como em uma coreografia de tanztheater, ao aproximar e afastar a sua câmera dos elementos da cena. Do amplo panorama empalidecido de frio aos detalhes dos finos fios de crepe tecidos com ajuda da neve, vamos caminhando no ritmo do andar kabuki onde, de tempos em tempos, os artistas se detêm, arregalam os olhos e “congelam” em uma pose que cristaliza o ápice de uma emoção.
A gestualidade e a maquiagem são marcas inconfundíveis do kabuki. Nesse estilo, os gestos e posturas caricatas (mie) “descrevem” um personagem, pois a sustentação de uma pose fixa serve para dar mais expressividade para determinada emoção, como se a retenção dos movimentos emprestasse ênfase para determinada característica do personagem. A pintura do rosto (kumadori) simula as máscaras dos teatros de elite, replicando suas linhas e expressões marcantes. Uma cineasta que começou seu trabalho artístico como pintora na Paris dos anos 1960 certamente não se furtaria de explorar essas poderosas ferramentas plásticas. O segundo paradoxo que Ottinger propõe em Sob a Neve reside justamente aí: ela faz coexistirem harmoniosamente as cores e gestos exuberantes do kabuki e a dormência e consternação do inverno.
É depois de mais de duas décadas realizando uma série de filmes na China, Mongólia, Coreia e Japão que a cineasta, fascinada pela cultura asiática, compõe a sua “sinfonia em branco maior”. O título do clássico poema de Théophile Gautier, que elenca variados elementos para instalar a sensação de uma cor, acabou virando uma forma de se referir a qualquer composição majoritariamente em tons brancos.
No final de 1974, Werner Herzog percorreu a pé a distância entre Munique e Paris debaixo de neve, acreditando que assim, de alguma maneira mágica, sua amiga doente na capital francesa – a dama do cinema alemão Lotte Eisner – aguentaria viver no mínimo até a sua chegada. No diário que cultivou ao longo das três semanas de viagem caminhando sob a neve, descreveu a estranha atmosfera de silêncio profundo e desolador que um cenário totalmente branco de neve cria. É como se os dias, por mais claros que fossem, produzissem sempre uma estranha e interminável noite branca.
*Anelise De Carli é pesquisadora da área da Filosofia da Imagem com doutorado em Comunicação (UFRGS), professora da Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH), ensaísta e artista visual.
Conversas.doc é um projeto de crítica no qual artistas, jornalistas, estudantes, críticos e agentes culturais produzem conteúdos sobre cada filme. Textos, fotos, vídeos e ilustrações fazem parte da iniciativa, que visa promover uma conversa da cena local com os filmes através de conteúdos virtuais.