José Luis Salvador
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Gravurista, artista gráfico e ilustrador, professor de arte em escola pública estadual, José Luis Salvador é licenciado em Educação Artística e especialista em Artes Visuais pela Universidade Federal de Rio Grande – FURG e integra o grupo “Cupins da gravura”. Também atuou como agente comunitário de saúde na Estratégia Saúde da Família pela Prefeitura Municipal da cidade do Rio Grande e desenvolveu trabalhos como tatuador e como músico baixista em bandas rio-grandinas.
Foto de José Luis Salvador
Entrevista com José Luis Salvador
Por Izis Abreu
Seus trabalhos são visivelmente políticos e fortemente marcados por uma crítica às desigualdades sociais e opressões geradas pelo capital, sobretudo em relação à população negra. Fale um pouco sobre essas características e como sua arte se tornou política, ou seria anarquista?
Meus primeiros 8 anos de idade foram vividos na cidade de Canguçu, num tranquilo bairro rural, já em 1986 passei a viver na periferia da cidade portuária de Rio Grande. Neste local, da adolescência à vida adulta, experienciei a violência e adversidades me tirarem amigos, inclusive vi alguns cometerem suicídio. Na periferia, o abuso policial e o abandono das famílias pelo sistema são alimentados constantemente por parte do estado e suas estruturas. Nos anos de 1990 completei o ensino médio e ingressei na faculdade. Nesta época, tive as primeiras experiências de emprego, foi quando comecei a ter contato com quadrinhos, revistas, fanzines, discos e CD. Acredito que minha inclinação política e a identificação com a estética da contestação vem desde estas experiências na cultura underground e do contato com muitos conceitos filosóficos e políticos, anarquistas inclusive, com os quais mediei e construí laços intelectuais e afetivos. Dos fanzines trocados pelo correio a eventos regionais, da leitura de revistas e audição de discos adquiridos em sebos às vivências interpessoais na cultura alternativa, venho construindo meu caminho e isso fica perceptível no meu trabalho. A questão racial passou a fazer parte do meu trabalho espontaneamente e instintivamente pois sempre percebi ser um dos únicos negros frequentadores dos locais que mencionei. Quando passei a frequentar ambientes de reflexão e debate além da universidade, senti necessidade de reafirmar a questão de raça e posicionamento de classe, de um homem negro que propõe poéticas através da linguagem da gravura. Mas também percebo que o momento político colabora com esta preocupação e faz com que a temática da identidade negra fique exposta tanto em minhas pesquisas artísticas como na minha atuação em sala de aula.
Na maioria de seus trabalhos você utiliza, tanto para suas matrizes como para a impressão, resíduos domésticos, como embalagens de alimentos e produtos de higiene ou materiais da indústria, como o Laqueado. O uso desses materiais marcam uma crítica à sociedade de consumo e seus impactos na sustentabilidade e no meio ambiente?
A investigação material sempre fez parte de minhas pesquisas em meus projetos acadêmicos. Na graduação explorei a utilização de diferentes tipos de tecidos para minhas estampas. Por volta de 2012, em minha especialização, desenvolvi algumas investigações utilizando o plástico como suporte para impressão. Mais recentemente, a busca de uma mudança de hábitos de consumo, tanto em meu cotidiano como em minha atividade artística, como por exemplo, encontrar uma alternativa ao uso de tinta tipográfica, de propriedade tóxica (até hoje não foi possível substituir em função de custo/benefício e dificuldade de acesso a tintas à base de água), colaborou para alguns redirecionamentos em relação ao uso de materiais que tenho hoje. Atualmente, com o Coronavírus, na impossibilidade de sair de casa, passei a incluir o material doméstico reciclável em minha produção. O uso desses reciclados como material de gravação e impressão vai ao encontro dessa busca de uma prática artística que não seja danosa ao ambiente, direcionada à reutilização dos recursos de forma racional e mais sustentável na medida do que me é possível. Percebo que os materiais potencializam imagens que sobre o fundo branco do papel já eram caracterizadas pelo impacto visual. As narrativas visuais que proponho têm como plano de fundo questões formais que envolvem o material reaproveitado, as ferramentas, a mudança de paradigma e a produção de sentidos. Hoje faço uso das técnicas da gravura, da colagem e da pintura. Elas têm sido minhas referências, meus elementos de expressão e trabalho.
Sem título, 55x31cm, 2020.
Além de artista gráfico e gravurista você também atua como arte-educador. As vivências em sala de aula, com crianças, jovens e adultos, ressoam em suas proposições artísticas? Fale um pouco sobre suas experiências em aula e se, ao contrário, seus trabalhos impactam seus alunos de alguma maneira.
Sim. Venho trabalhando na rede pública de ensino há mais ou menos 12 anos e, embora as adversidades de longa data da educação em nosso país, o trabalho em escola pública para mim é gratificante, do ponto de vista das relações humanas. Nele busco despertar a sensibilidade, exercitar o olhar, proponho algumas possibilidades de expressão a crianças, jovens e adultos. Quando meus alunos veem minhas imagens pela primeira vez, percebo inicialmente curiosidade, logo em seguida vem a pergunta: “como é feito?”.
Matrizes em material emborrachado (laqueado e neolite)
A gravura tem isso: a imagem é dura, tem uma linguagem própria, às vezes parece desenho a nanquim, mas possui texturas características, e o traço que desenvolvi ao longo do tempo colabora para essa curiosidade. Quando proponho a prática desta linguagem em sala de aula, duas coisas chamam a atenção: o gosto pela manipulação das ferramentas (goiva e rolo) e a surpresa quando a imagem surge invertida no papel, para eles parece mágica, para mim também. Enfim, muitos alunos me acompanham nas redes sociais, e é gratificante receber comentários de alunos em postagens de trabalhos meus no Instagram, e muitas vezes levo para a sala de aula a discussão sobre elas.
Muitas de suas proposições são de arte urbana, de modo que sua completude depende da intervenção no espaço público e, consequentemente, da interação com o passante. Fale um pouco sobre como sua produção artística tem sido atravessada pelas imposições da quarentena e de todo o cenário que estamos vivenciando em função da Covid-19?
As técnicas do Lambe-lambe e especialmente o Sticker foram onde encontrei as melhores soluções em minha atividade. Tenho feito seleção de imagens, organizado arquivos, anotações, sketch books, vídeos, sempre acompanhando e dialogando com outros artistas que também produzem arte impressa e arte de rua. O momento atual é de introspecção, de revisão e de observação. O meio urbano sempre foi o lugar das experimentações mais interessantes, verdadeiras e espontâneas. Na rua, o trabalho, além de permitir um maior alcance e diálogo, não seleciona quem entra em contato, quem tem acesso, nem por questões financeiras, institucionais ou de adequação. Vejo a cidade como um verdadeiro campo de experimentações, onde é possível a interação e a reflexão através de uma arte pública, aí nesse movimento de produzir e colocar a obra em contato com um público maior, o frequentador dos espaços públicos fecha o ciclo: obra e espectador se encontram e fazem parte do mesmo quadro urbano.
Sem título, 150x65cm, 2020
Agosto, 2020