José Luis Soares Salvador
Os dias atuais estão sendo decisivos, a pandemia parece estar acentuando uma grande crise civilizatória, a paisagem mudou, todas as pessoas de repente passaram a usar máscaras, pela nossa sobrevivência isolamos nossos corpos, a cada dia nossa rotina se torna dados inseridos em aparelhos, dos quais as telas se tornam nossa extensão, não é ficção, muito menos algo que acontece somente em países orientais, estamos passando por uma verdadeira emergência global.
Vejo o medo, a dúvida e a insegurança como sentimentos recorrentes neste momento, as coisas que mais me incomodam nesta adversidade são: o individualismo, a negação do outro e da vida em troca do consumo, pois, isto determina nosso afastamento de tudo que é natural. Está sendo difícil imaginar um futuro possível, tenho buscado na arte possibilidades de pensamento e melhores interpretações da vida, desvios possíveis e relações essencialmente humanas, ou ainda, soluções de afeto e criatividade para que assim possa manter minha sanidade e lucidez.
Sem título, 31x 23 cm, impressão em relevo, colagem e acrílica, 2020 | Sem título, 39 x 25 cm, impressão em relevo, colagem e acrílica, 2020 © José Luis Soares Salvador
O contato com a arte funciona como um momento de meditação, de busca do entendimento da vida, fundamental para evitar o adoecimento neste cotidiano turbulento e distópico que vivemos. Tenho também feito pesquisas sobre a produção de artistas nacionais e internacionais, como por exemplo trabalhos significativos de pintores e pintoras negras, alguns atuantes entre nós e outros que deixaram seu legado ao morrerem precocemente, produções como estas, até pouco tempo atrás não era possível ter contato. Pesquisas de produções artísticas são para mim subsídios para minha vivência como professor/artista. Minha quarentena tem sido composta basicamente por estudos, a prática diária de registros em sketch books e a criação de imagens em gravura sobre a trilha sonora de Archie Sheep.
Os acontecimentos que vivemos hoje, as tentativas de retrocessos políticos, o jogo nefasto dos personagens dominantes, a exposição das fragilidades do sistema vigente e a ebulição social, são significativamente um cenário de transformações cruciais, mesmo sem conseguir precisar quais são estas mudanças, vejo que nosso modo de vida, o convívio social, nossos afetos, e nossa relação com a tecnologia estão sobre um profundo impacto.
Sem título, 52 x 27,5 cm, impressão em relevo, colagem e acrílica, 2020 | Sem título, 50 x 35 cm, impressão em relevo, colagem e acrílica, 2020 © José Luis Soares Salvador
Minha atividade como gravador sempre foi determinada pela observação da vida, o estudo de questões materiais e temáticas sempre estiveram juntos em meu trabalho, me interesso muito pelas questões da representatividade, o resgate da identidade, o figurativo existencial, as temáticas sociais e o pensamento sobre os valores de nossa sociedade. A impressão em relevo é para mim uma prática quase que diária, com a qual divido o tempo atuando como professor de arte de escola pública, que no momento enfrenta o desafio da adequação a forma remota de ensino. A arte figurativa busca a expressão e a afirmação de pessoas negras e periféricas, através do embate artista/linguagem, numa prática intensa das possibilidades da linguagem da gravura.
O combate à Covid19 tem hoje como única alternativa efetiva, o isolamento. Esta condição causou muitas mudanças em meu cotidiano, entre elas o distanciamento das relações pessoais e a redução da circulação pelas ruas. A principal reflexão que me fiz neste momento de incerteza, foi sobre as consequências da ação humana sobre o planeta e o consumo desenfreado de seus recursos. Acredito que catástrofes, surtos, doenças, escassez de alimentos, extinção de animais, aquecimento global e outros acontecimentos, vem nos alertando e exigindo uma mudança radical de nosso comportamento, onde considerar sempre o outro, a natureza e as gerações futuras, seja imprescindível. Os trabalhos que tenho desenvolvido surgem quando em estado de quarentena penso a criação artística e seus recursos, pois a atividade da gravura muitas vezes envolve não só o uso de ferramentas, mas materiais que servem de suporte para a gravação de uma matriz, que precisará de outros materiais para a sua impressão. Nesta situação de retiramento, penso a enorme quantidade de materiais que descartamos, pois o consumo de produtos que se tornou necessário em nossa vida, gera o descarte desenfreado de embalagens, que vão para o meio ambiente gerando enormes consequências. Diante deste questionamento passei a utilizar meu resíduo caseiro como material para a minha produção, onde embalagens de sabonete, pasta de dente, remédios, rolo de papel higiênico, café, gelatina, suco, leite e outros, tem revelado ótimos suportes de impressão, com isso além de promover um destino interessante para os recursos do meio ambiente, reduzindo o lixo doméstico, tenho evitado a ida até a papelaria.
Sem título, 28 x 27 cm, impressão em relevo e aquarela sobre embalagem, 2020 © José Luis Soares Salvador
© José Luis Soares Salvador
José Luis Soares Salvador (Rio Grande, RS) é artista gráfico e gravurista, professor de arte do ensino fundamental e da educação de jovens e adultos. É pós-graduado em Artes Visuais pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e foi selecionado em 2020 no Concurso de Arte Impressa do Goethe-Institut Porto Alegre.
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