Através de texto e fotografias, a artista e pesquisadora Anelise De Carli aborda questões sobre imaginário e a experiência de confinamento e, entre suas reflexões, também intercala trechos de narrativas que vem recebendo no projeto Sonhos da Quarentena. Nesta chamada pública em quatro idiomas, ela convida pessoas a relatarem, anonimamente, os sonhos que têm tido durante a situação de pandemia. De Carli reflete sobre o exercício de olhar para as mais de 300 contribuições que já recebeu e entender o que emerge delas em um momento sensível que nos atravessa coletivamente.
Sonhei que estava chovendo na rua e a chuva entrava em um único cômodo da casa porque não tinha telhado.
O imaginário não é só uma palavra que descreve uma coleção de visualidades ou pré-disposições ideológicas. Ele é uma tentativa de descrever o nosso sistema de pensamento como seres humanos. O fato de a nossa espécie produzir rituais e pensamento abstrato desde sempre indica uma forma de pensar que extrapola o conhecimento do mundo que pode ser adquirido somente através dos dados dos sentidos. Significa dizer que o imaginário não é um conjunto de imagens que temos a partir daquilo que vemos, ouvimos, degustamos; imaginário é a própria maneira como essas imagens se agrupam, considerando também outras imagens que não vêm da nossa memória biográfica.
Também “imagem” não é sinônimo de “coisa visual”, mas sim de uma energia ou um dispositivo (dependendo da orientação teórica) que carrega um sentido. Há imagens em um texto escrito tanto quanto há imagens numa fotografia ou num sonho. É a essas imagens que se refere o “imaginário”.
Sonhei que corria, corria muito e a corrida não tinha fim. Sentia medo de estar correndo sozinha.
Estou coletando narrativas de sonhos que as pessoas estão tendo durante sua experiência de quarentena. Se parte da matéria dos sonhos são nossas experiências quando acordados, me interessou pensar quais seriam então esses materiais dos quais os sonhos estariam se valendo, agora que a nossa vida desperta estaria mais circunscrita a ambientes restritos. No entanto, três fatores são essenciais para pensar esses sonhos. Essa não é uma quarentena qualquer, uma reclusão como por vezes se propõem as os monges, mas uma atitude diante de uma crise sanitária global que já levou mais de 50 mil pessoas. Além disso, esse isolamento social não é exatamente voluntário, mas é exigido por autoridades políticas com poder de vigilância sobre nós. Por último, não estamos restritos a qualquer ambiente, como pessoas com restrição de liberdade que passam anos em celas de presídios federais ou pessoas internadas em casas de cuidados para saúde mental; nós estamos internados na nossa própria casa. Essa junção de fatores cria um cenário simbólico muito específico. A casa nunca é um ambiente neutro. Ela é classicamente entendida como uma metáfora da nossa consciência, com seus “quartos escuros” de inconsciência. Significa que, apesar de tudo, a reclusão em casa nos faz viver um momento privilegiado de acesso ao nosso próprio subsolo. E é isso que me parece o mais importante nesse momento.
Sonhei que era adolescente e voltava a pé da escola para a casa de meus pais, no interior. A estrada era de chão batido, e logo ficava escuro. O caminho parecia cada vez mais longo. Tive medo porque achei que estava sendo perseguida por 4 homens de farda, mas logo eles me ultrapassaram. A estrada então virou uma daquelas pistas de obstáculos que geralmente há em quartéis. Agora era eu seguindo os homens de farda, passando pelos obstáculos como eles passavam. Eles riam e achavam que eu não conseguiria. Mas consegui, e, quando terminamos, continuei o caminho para casa.
Muitos desses sonhos que estou lendo trazem imagens em comum. A imagem da água – não uma água benfazeja e tranqüila, mas uma escura, que afoga, inunda e é cheia de mistério. Lugares fechados com poças de sangue no chão. Muitos animais, principalmente mamíferos e viperinos, montanhas, paisagens distantes, janelas, abismos, mise em abyme (quadros dentro de quadros). Todos esses elementos são literalmente distantes, se pensarmos em imagem como sinônimo de figura, mas simbolicamente muito próximos.
Sonhei que estava ensaiando uma peça com muitas folhas de papel, onde os textos estavam escritos. A rotunda do teatro se abria ao fundo e víamos, meu colegas e eu, o oceano.
Essa noite, sonhei que tudo o que eu pegava para comer tinha uma pílula escondida. Eu mordia, encontrava a pílula e tirava ela de dentro do alimento.
Todos esses símbolos são formas diferentes das mesmas angústias. É o medo do descontrole, da falta de conhecimento sobre o porvir, da eterna “noite da alma”. É o movimento que continua à revelia da nossa vontade – por isso, mesmo que microscópico, temos a impressão de ser mais poderoso. É o vírus, inimigo invisível, que se espalha sem que possamos traçar bem a sua origem, sem que se saiba exatamente o que funciona ou não contra ele. É um jogo em que estamos obrigatoriamente atados, às cegas.
Existem várias maneiras de reagir a esse universo angustiante. Podemos querer controlar e acabar com esse movimento, aceitá-lo e vê-lo como não tão assustador ou conviver com ele. E pelos mais de 300 sonhos das pessoas que recebi até agora, a terceira via parece ser a que mais aparece nas imagens oníricas. A aceitação daquilo que é estranho e antes foi excluído.
Sonhei que dava um abraço num ornitorrinco.Ele era dócil e coisa mais gostosa de apertar.
Sonhei que era muito amigo de um cavalo. Eu não queria explorá-lo com o meu peso o fazendo me levar por aí, mas ele me falou em pensamento que sabia que eu não possuía interesse em exercer poder sobre ele. Chegamos a um lugar muito parecido com o lugar que me criei. Desmontei e ele seguiu o seu caminho.
Segundo o povo do Batuque (variação do candomblé no Rio Grande do Sul), 2020 é o ano de Obaluaê ou Xapanã, na mitologia yorubà (e suas variações). Pode-se fazer uma aproximação desse mito com o Quíron da mitologia greco-romana (e suas variações). Ambos falam daquele que traz a praga, a sina – e de alguma maneira são responsáveis por isso –, mas que contém em si mesmo a chave para a cura. Ambos falam do aprendizado silencioso. Ambos falam do conhecimento de si e da renúncia de algo importante como saída para o mal. Essa é a imagem que interessa para o imaginário. Aqui precisamente a imagem que contém o seu oposto.
Então, é preciso recriar um mundo. Criá-lo incluindo nossas próprias sombras, e não aumentando o dial da luz de uma maneira a nos fazer acreditar que não há mais sombra alguma. Não há mais espaço para a exclusão da diferença, a aniquilação dos mundos outros que outras cosmologias descrevem, mas que são diferentes de certa cosmologia que colonizou o mundo. Tudo isso do qual alguém um dia teve medo e procurou eliminar, tudo isso precisa ser incorporado.
Voltar a prestar atenção nos sonhos me parece ser uma boa maneira estratégia para lidar com esse momento. Na verdade as imagens estão o tempo todo aí, criando condições para as nossas formas de entender o mundo, mas nos sonhos, como não é perceptível uma linha lógica da narrativa, fica mais fácil de vê-las sem já estarem na forma de discurso. Porque as imagens vestem roupas diferentes, dependendo do contexto. Elas são muito adequadas.
Criar esse espaço de auto-observação e autocuidado me parece ser uma maneira de produzir uma dobra no tempo, ou seja, gerar vida no meio da morte. Eu fiquei muito chocada em ver as fotos das ruas de Guayaquil, os caminhões refrigerados em NY, as filas de caixões em Bergamo e com esses elementos imaginar as inúmeras comunidades periféricas abandonadas do Brasil todas as vezes que ouço sirenes na rua. Essas imagens foram como Medusas pra mim. Me deixaram atônita, imóvel diante do abismo. Me fizeram imaginar um futuro em que somente há reproduções delas mesmas. Isso é trabalho da imagem. Mas foi o Papa subindo sozinho, debaixo de chuva, a escadaria da Praça de São Pedro e indo encontrar a Cruz dos Milagres, foi essa imagem que me fez cair de joelhos e chorar sozinha em casa, a casa onde estou quarentenada, sem motivo racional aparente. Isso é uma dobra. É a produção de vida no meio da morte. E isso também é trabalho da imagem.
Anelise De Carli
Pesquisadora em Filosofia da Imagem e Teoria do Imaginário. Artista Visual e Fotógrafa. Doutoranda em Comunicação (UFRGS). Integra a Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades (APPH), onde organiza o Grupo de Pesquisa Pensamento por Imagem (GPPimg). Também participa do Imaginalis (Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário), grupo co-fundador do Centre de Recherches Internationales sur I'Imaginaire (CRI2i).