Dias de quarentena
Livros Quarentena - Marcus Mello
Os dias de quarentena não têm sido fáceis, embora nunca deixe de reconhecer o quanto me encontro em uma situação privilegiada em relação à imensa maioria das pessoas. Sou grato por contar com amparo afetivo, viver em uma casa confortável e possuir um trabalho estável. Sem isso, talvez não suportasse os 60 dias de isolamento social que acabo de completar.
Um das coisas mais curiosas é a percepção do tempo mesmo. Por um lado, esses dois meses se arrastaram de forma torturante, com os dias correndo lentos, todos iguais. Mas agora, olhando em retrospecto, a sensação é oposta, e parece que esses dois meses passaram voando.
Nesse período, fui acometido por crises de ansiedade que provocaram muitas noites de insônia e uma enorme dificuldade de concentração. Para além do confinamento em si, esse quadro foi provocado por insistentes sintomas de que tivesse contraído a covid-19. Embora leves, tais sintomas se estenderam por mais de 20 dias, o que me levou a consultar um médico. Como não tive febre, ele me tranquilizou, dizendo que não havia necessidade de ir até um hospital. Ainda assim, o quadro de ansiedade se manteve. Afinal, como bem resume o ditado, o medo não é brinquedo.
Souvenir de Bavo Defurne - Telecine / Tudo o que Nos Separa de Thierry Klifa - Telecine
Para suportar tudo isso, os filmes e os livros têm sido o grande conforto.
Intercalo o trabalho remoto (que inclui publicações diárias nas redes sociais da Cinemateca Capitólio sobre a história do cinema gaúcho) e as tarefas domésticasintermináveis com leituras e “sessões de cinema”, às quais procuro organizar seguindo um certo método. Por exemplo, assistir aos filmes mais recentes de minhas duas atrizes favoritas, as francesas Isabelle Huppert e Catherine Deneuve, que havia perdido no cinema ou não tiveram lançamento comercial no Brasil. Também me programei para ver regularmente filmes dirigidos por mulheres – entre eles o extraordinário drama de guerra “A Ascensão”, da diretora russa Larisa Shepitko, vencedora do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1977 –, e ainda muitos filmes brasileiros. A combinação desses dois “mandamentos”, aliás, me proporcionou um dos momentos mais prazerosos da quarentena:rever, na ordem em que foram lançados, os filmes datransgressora trilogia feminista da cineasta Ana Carolina, “Mar de Rosas” (1977), “Das Tripas Coração” (1982) e “Sonho de Valsa” (1987).
Antônio Fagundes em Das Tripas Coração - Crystal Cinematográfica / A Ascensão, de Larisa Shepitko - CPC-Umes Filmes
Revisões e olhar para o passado, aliás, tem sido minha principal obsessão ao longo dos dias de confinamento. A crise sanitária provocada pelo coronavírus me fez pensar muito sobre a pandemia da Aids, que marcou a minha geração no começo dos anos 80. Éramos jovens, estávamos começando nossa vida sexual e, de repente, surge uma doença fatal, transmitida através do sexo. Foi algo devastador, em todos os sentidos. Na época, procurava ler tudo sobre o assunto, e tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde eu próprio iria sucumbir àquela doença, cujo diagnóstico então equivalia a uma sentença de morte. A experiência de, em 2020, viver uma nova pandemia, causada por um vírus cuja transmissão se dá ainda mais facilmente, me fez voltar a sentir o mesmo medo que experimenteiao longo dos anos 80 e 90. Um sentimento que me fez buscar na estante os livros que li na época sobre o tema, incluindo dois clássicos sobre pestes que dizimam populações inteiras: “Um Diário do Ano da Peste” (1722), de Daniel Defoe, e “A Peste” (1947), de Albert Camus. Não são leituras leves, obviamente, e pode parecer estranho retornar a elas neste momento. Para mim, no entanto, elas acabaram produzindo um efeito contrário e, de certa forma, me acalmaram. Ao reler esses livros agora, passados 30 anos, lembrei do garoto assustado que eu era, e que viu tantos serem levados por aquela doença implacável. Esse garoto de certa forma também morreu. Ou virou outra pessoa. Mas ao longo de um doloroso processo, aprendeu a lição mais óbvia: as coisas, ainda que terríveis, sempre passam.
Mesmo assim, o peso do pessimismo persiste. Durante a quarentena, nada me impactou mais que a informação de que hoje o Brasil tem uma população de cerca de 50 milhões de “invisíveis”. Este dado, descoberto a partir da necessidade do governo federal de fazer um cadastro para o repasse emergencial de R$ 600,00 às pessoas em situação de vulnerabilidade social, é uma mancha com a qual continuaremos convivendo após o final da pandemia. Uma imoralidade. Um escândalo. Um atestado de que fracassamos como nação. Um número que supera a população da Espanha inteira, que equivale à mais de metade da população da Alemanha, esses 50 milhões de indivíduos ditos invisíveis irão assombrar a nossa e as próximas gerações.
Tempos duros, muito duros.
Marcus Mello
Programador, pesquisador e crítico de cinema, um dos editores da revista Teorema, fundada em agosto de 2002, uma das publicações de cinema mais longevas do Brasil. Formado em Letras, é Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e especialista em gestão cultural pela Universidade de Girona, na Espanha, em curso realizado em parceria com o Itaú Cultural de São Paulo. Entre maio de 2013 e dezembro de 2016 foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria da Cultura de Porto Alegre e diretor da Cinemateca Capitólio, inaugurada em março de 2015. Atualmente integra a equipe da Cinemateca Capitólio, onde atua em atividades envolvendo produção de eventos, programação, acervo e divulgação.