Filosofia afrodiaspórica  Por uma maior pluralidade do conhecimento

Latitude – People wear masks of Paulo Freire during a protest against in Rio de Janeiro, Brazil. Foto (detalhe): Silvia Izquierdo © picture alliance / AP Photo

Quando finalmente o Brasil, país com grande população afrodescendente, estabeleceu o ensino de cultura e história africanas nos currículos escolares, no ano de 2003, ficou evidente que a filosofia africana era pouco conhecida no país. Diante de tal lacuna, Wanderson Flor, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, criou o site Filosofia Africana A plataforma é dedicada à divulgação da filosofia elaborada “desde África, com África e politicamente a favor de África”, como diz Flor, tendo em vista uma maior aproximação Sul-Sul no campo da filosofia.

Como as filosofias africanas têm sido abordadas nas universidades e entre pesquisadores no Brasil?
 
Nos lugares onde o debate sobre a existência das filosofias africanas foi superado, são várias as abordagens das mesmas na formação e pesquisa institucionais. Essas abordagens raramente têm como base perspectivas afrocentradas mais radicais, de restrição de contato entre o pensamento africano e o ocidental. Normalmente, busca-se um diálogo crítico e construtivo, por vezes de aspecto decolonial, por vezes de aspecto comparativo, ou ainda intercultural ou multicultural. O que se festeja é o enfrentamento dos epistemicídios e racismos epistêmicos que algumas vezes invisibiliza e outras vezes exotiza o pensamento filosófico produzido fora do eixo ocidental. 
 

Como a oralidade de certas tradições do continente representa uma barreira à aceitação da filosofia africana? 
 
A oralidade é um elemento estruturante da produção do conhecimento e do pensamento filosófico de vários povos do mundo fora do contexto acadêmico ocidental. E adquire esse estatuto em função de seu caráter vinculante e intersubjetivador, de contato direto entre sujeitos, que a palavra falada ocupa nas sociedades tradicionais, inclusive no continente africano. A questão é que há um certo preconceito ocidental em torno do caráter não universalizador e localizado da palavra falada, em contraste com a pretensão de universalidade, ou de universalização, do conhecimento difundido de modo escrito. Por outro lado, as tradições orais que atravessam as filosofias africanas não recusam – e nem desconhecem – a escrita. A centralidade da palavra falada diz muito mais de uma relação ontológica com a linguagem do que de uma cadeia de ignorâncias que forçaria o abandono da escrita. Neste sentido, o preconceito ocidental contra a oralidade africana é não apenas moralmente reprovável, mas também uma comprovação de ignorância atrelada ao racismo.
 
Grande parte da exclusão da filosofia africana se dá devido à relação colonialista Norte-Sul. Como o pensamento filosófico originado na África, na América Latina, no Oriente Médio ou na Ásia pode se beneficiar de relações políticas, culturais e sociais entre povos do Sul Global?
 
Relações de cooperação que busquem enfrentar as sequelas coloniais na produção do conhecimento podem fortalecer, de modo decisivo, as perspectivas de povos que, apesar da colonização, nunca cessaram de pensar, de produzir conhecimentos, conceitos e práticas. Se conseguirmos superar os currículos “ocidentocêntricos”, para utilizar um termo difundido pela nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, podemos estabelecer outras maneiras de incentivar políticas de circulação do conhecimento. E isso é benéfico não apenas para os povos do Sul Global, mas para todas as sociedades que podem se beneficiar da pluralidade dos conhecimentos e dos modos de produzi-los.
 
Nesse contexto, qual a importância de um site como o Filosofia Africana para as relações entre o Brasil e os países africanos?
 
Os países lusófonos do continente africano têm acessado e colaborado com o conteúdo do site Filosofia Africana com materiais em língua portuguesa que, em geral, são também de difícil acesso nesses países. Isso tem incentivado a circulação de materiais entre pensadores brasileiros e do continente africano de maneira mutuamente colaborativa. Além da interação pelo site, há também os contatos por e-mail, que findam por criar redes interessantes. Isso fortalece tanto o diálogo entre os países, como a colaboração.
 
A seção Textos Diaspóricos do site traz mais de 100 trabalhos acadêmicos de brasileiros sobre filosofia africana e afro-brasileira. O que essa produção acadêmica da Diáspora tem revelado sobre a aproximação do pensamento Sul-Sul?
 
Essa produção vem cada vez mais buscando intensificar a pesquisa colaborativa entre a Diáspora e o continente africano. Se até o final do século 20, o destino de pesquisadores que quisessem conhecer o pensamento africano era ir para algum centro de pesquisa sobre África em universidades europeias ou estadunidenses, agora há um interesse muito maior em doutorados sanduíche, pós-doutorados ou mesmo estágios de outras naturezas em países africanos. A vinda de pesquisadores africanos para o Brasil é antiga, embora pouco conhecida entre nós. A presença de pesquisadores de destaque como Kabengele Munanga não é incomum. Se não conhecemos o trabalho desses pensadores, essa é mais uma das realizações do velho racismo acadêmico.

É possível apontar alguns traços de distinção entre a filosofia africana e o pensamento filosófico de outros lugares?

 Há muitas maneiras de pensar o que seja a filosofia hoje, inclusive a filosofia ocidental. Algumas delas, por exemplo, recusam a ontologia e a metafísica como campos filosóficos. Para outras abordagens, a epistemologia seria muito mais uma psicologia do conhecimento do que um campo filosófico. Esse debate está longe de ser pacífico. Se colocarmos essa dimensão relacionada ao pensamento africano, a coisa se complica mais. Se considerarmos a classificação feita pelo filósofo queniano Odera H. Oruka, haveria muitas maneiras de caracterizar o que seria específico das filosofias africanas, como o solo cultural, os elementos não dualistas na estrutura da realidade, o caráter coletivo do conhecimento e do pensamento etc. Mas se tomarmos, por exemplo, a filosofia profissional, praticada nas universidades e também contemplada na análise de Oruka, a estrutura da filosofia africana seria exatamente idêntica àquela produzida pelo Ocidente, distinguida apenas pelos objetos geograficamente determinados. O pensamento europeu idealista, por exemplo, teria a experiência da Revolução Francesa como um de seus marcos, e as filosofias africanas, em sua grande maioria, a experiência da colonização, e assim por diante. Em meu caso particular, que sou um divulgador das filosofias africanas, não trabalho com marcos identitários essencialistas. Para mim, as filosofias africanas são aquelas que pensam desde África, com África e politicamente a favor de África, entendendo aqui “África” como o referente de um contexto histórico específico em torno da multiplicidade do velho continente negro.

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