Poucos temas vêm sendo mais debatidos no momento do que a “crise migratória”. Mas a Alemanha tem mesmo um problema com excesso de imigrantes? A situação é paradoxal. Enquanto há escassez de profissionais por todos os lados no mercado de trabalho, a classe política e a mídia demonstram preocupação sobretudo com um assunto: a deportação.
A composição da população alemã mudou com muita rapidez: entre as crianças com menos de seis anos de idade nas cidades da antiga Alemanha Ocidental, aquelas com histórico de migração – ou seja, crianças que têm pai e/ou mãe migrante – formam atualmente a maioria. Enquanto isso, uma taxa de natalidade continuamente baixa e um escasso saldo migratório levaram a uma dramática falta de mão de obra no país. Essa evolução já era previsível há 15 anos. No entanto, quando, naquela época, eu previa em palestras que os empregadores teriam em breve que sair em busca de mão de obra, a indiferença nos rostos de quem me ouvia era evidente. As elites políticas e econômicas estavam acostumadas com um excesso de candidatos por vaga e, em parte, ignoravam com arrogância minhas preocupações.Hoje, em 2024, já não é mais possível fechar os olhos para as dificuldades do mercado de trabalho: empresas, o comércio varejista, o setor da gastronomia – todos procuram desesperadamente por funcionários. Entre os problemas enfrentados pela economia alemã, a “escassez de trabalhadores qualificados” ocupa um dos primeiros lugares em todas as pesquisas. Na realidade, não há procura apenas por “mão de obra qualificada”, mas a escassez atinge todos os segmentos do mercado de trabalho. Diante disso, é surpreendente que a classe política e a mídia continuem debatendo quase obsessivamente sobre a chegada de migrantes. Desde 2023 que a “crise migratória” se tornou uma espécie de bola de neve, a ponto de os partidos políticos, estejam no governo ou na oposição, praticamente concordarem que o país torna “muito fácil a vida daqueles que querem se beneficiar do nosso Estado de bem-estar social”, como afirma Christian Lindner, ministro alemão das Finanças até novembro de 2024. Para a União Democrata Cristã (CDU), seria preciso se livrar o mais rápido possível dos ucranianos que não estão empregados. Ao mesmo tempo, o chanceler federal social-democrata continua a repetir estoicamente a máxima de que as pessoas deveriam ser deportadas “em grande escala”.
Deportação de potenciais trabalhadores e contribuintes
Entre as pessoas que fugiram da guerra na Ucrânia depois de 2022, as mulheres sozinhas com filhos perfazem um total de 80%, de forma que a acusação de que elas estariam fugindo de trabalho soa um tanto quanto mesquinha. Além disso, muitos refugiados tiveram também que aprender que o recebimento de recursos do Estado dificilmente pode ser conciliado com o trabalho remunerado. Isso significa, portanto, que o Estado cria incentivos legais para que as pessoas não trabalhem. E, por fim, a Lei de Residência foi alterada nada menos que 71 vezes entre 2015 e 2023, ou seja, em média cerca de nove vezes por ano. Até mesmo advogados experientes mal conseguem acompanhar o ritmo dessas mudanças, o que torna a vida dos refugiados (e também de “trabalhadores qualificados” migrados) desnecessariamente difícil. Apesar de tudo isso, a situação dos refugiados sírios e iraquianos continua sendo uma história de sucesso: em 2022, quase 60% dos que haviam recebido benefícios básicos do Estado entre 2014 e 2016 tinham conseguido um trabalho atrelado à seguridade social – mesmo aqueles com baixa qualificação escolar. Isso suscita a questão: por que os números crescentes de asilo despertam uma agitação histérica? E uma deportação em “larga escala” não seria também uma deportação de trabalhadores e contribuintes em potencial?Talvez o barulho das disputas ideológicas possa ser melhor compreendido à luz dos recentes sucessos do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que polemiza contra a imigração para o país em termos abertamente racistas. É evidente que os partidos estabelecidos estão tentando recuperar terreno nesse âmbito. Entretanto, a AfD celebra seus melhores resultados nos estados que pertenciam à Alemanha Oriental, cuja população se reduziu drasticamente entre 1990 e 2022 – perdas que vão de 14% (Saxônia) a 25% (Saxônia-Anhalt). Ou seja, a rejeição à imigração é maior justamente onde a maioria das pessoas emigra e onde muitas vagas de emprego nem podem ser preenchidas, mesmo em regiões estruturalmente frágeis. Isso não é tão fácil de explicar, mas uma coisa é certa: as razões do sucesso da AfD estão também em outro lugar, e a repetição de seus slogans reforça uma visão de mundo racista: nesses círculos, sempre se afirmou que haveria uma “crise migratória” e que os partidos estabelecidos não estariam fazendo nada.
Crise de identidade
No entanto, a raiva dos populistas de direita também se volta contra os alemães com histórico de migração considerados “não assimilados”. Como já mencionado, a composição da população da Alemanha mudou drasticamente. Em 1998, o governo federal reconhecia pela primeira vez que a migração seria “irreversível” (até então, a visão oficial era outra); em 2000, o “jus sanguinis”, que vincula a cidadania à biologia, em vigor até aquele momento, foi totalmente liberalizado. No entanto, a mentalidade e as condutas típicas de uma era anterior nem sempre acompanharam essa mudança. Em questões relativas à imigração, continua vigente o princípio da “integração”. Isso pode ter um lado pragmático (integração no mercado de trabalho, por exemplo), mas muitas vezes se esconde por trás disso a ideia romântica de uma unidade nacional preestabelecida, o que acaba deixando as pessoas, por fim, sobretudo insatisfeitas: nunca todo mundo está suficientemente “integrado”; sempre a sociedade está demasiado “dividida” etc.Isso torna ainda mais difícil reconhecer os avanços, pois a experiência mostra que a convivência no dia a dia funciona geralmente bem e é frequentemente bem administrada pela política local. Parece evidente que a Alemanha tem menos uma “crise de migração” do que uma crise de identidade. Para quem se envolve com o tema da migração há muito tempo, como eu, isso não surpreende. Há anos que as engrenagens apresentam ruídos, enquanto a política nacional vem deixando uma impressão cada vez mais caótica e desorientada. Em uma situação como essa, os tomadores de decisão deveriam reagir menos no Instagram e, em vez disso, desenvolver e conduzir um plano para a modernização consistente do país. Afinal, uma crise mental nunca está longe do colapso.
Este texto foi originalmente publicado pela Revista Gegenüber.