“Propriedade”, de Daniel Bandeira, exibido na Mostra Panorama da Berlinale, evidencia o abismo social e a impossibilidade de comunicação entre as classes no Brasil. Em entrevista, o diretor fala sobre como o filme expõe a herança colonial nas relações trabalhistas dos dias de hoje.
O longa-metragem brasileiro conta a história de Teresa, uma mulher de classe alta. Com o intuito de se recuperar de um trauma, ela decide passar um dia de tranquilidade na propriedade rural da família. Pouco depois de sua chegada, um grupo de trabalhadores armados, ameaçados de demissão após anos de exploração, toma o controle a propriedade. Eles temem pelo futuro e clamam por justiça. Enquanto seu marido Roberto é tomado como refém, Teresa se refugia em seu carro blindado, mas não consegue ligá-lo, o que transforma a suposta proteção em armadilha.Qual a origem do projeto que levou à realização de "Propriedade"?
O filme surgiu como um mero exercício de estilo. Toda a história se concentrava no drama de Teresa tentando sobreviver a uma ameaça externa sem nome nem rosto. Mas com toda a discussão acerca da polarização política que pautou o Brasil dos anos 2010, senti que não era mais possível manter a estrutura unilateral da história. Ao desenvolver também o drama dos trabalhadores fora do carro, vi a oportunidade de falar sobre o caos em que vivem as camadas mais populares e sobre a incomunicabilidade que alimenta a luta de classes ao longo da história do Brasil. O isolamento é o motor do nosso colapso enquanto sociedade.
No filme, fica clara a falência do diálogo em todos os níveis. Já não é mais possível falar, é preciso agir?
Na verdade, ainda falamos – e muito. De fato, discursos vêm se sobrepondo a diálogos a ponto de distorcer a compreensão que temos do outro. É aí que reside a desarmonia na nossa comunicação. É essa surdez que tem alimentado nossas tensões sociais mais recentes. O “não ser ouvido” é um gatilho pressionado com frequência pela extrema direita para arrebanhar seus seguidores – uma ferramenta de ascensão ao poder. Para as camadas populares, no entanto, “não ser ouvido” é uma condição histórica. O que resta a quem não se sente escutado nos seus direitos básicos, como alimentar-se, morar, estudar, existir? O que é preciso para que injustiças tão antigas gerem, enfim, revolta? " Propriedade é um exercício sobre esse ponto-limite.
“Propriedade” chama a atenção para os traços coloniais ainda presentes no Brasil de hoje. A retomada da autonomia e dignidade dos trabalhadores passa, no filme, por uma revolução armada. Por que esse caminho como única possibilidade na narrativa?
Porque a violência é o curso natural da incomunicabilidade. Cultivamos com orgulho a imagem de um povo trabalhador e resiliente, mas precarizamos todos os aspectos da vida da classe trabalhadora. Menosprezamos seus desejos e suas revoltas. Então caos é o que lhe resta. Meu foco não está tanto na “revolução armada”, que pressupõe uma organização mais complexa, mas no caos primordial, na rachadura que levará ao estouro da barragem. Esse caos me interessa enquanto cidadão e contador de histórias, pois ele pode se transformar em qualquer coisa, expor pessoas, respingar em qualquer um. Mas ele também é fruto de uma construção histórica muito antiga, colonial, na qual nosso “pacto de cordialidade” sempre atuou para suprimir um contato mais franco entre as classes. Não concordo com a violência, mas não me surpreende quando ela ocasionalmente irrompe.
“Propriedade”. Brasil, 2022. Diretor: Daniel Bandeira. Na foto: Maria José Sales e Malu Galli. Berlinale, seção Panorama, 2023. | © Vilarejo Filmes Durante o governo Jair Bolsonaro (2018-2022), houve uma polarização ainda maior e o abismo social no Brasil se tornou mais profundo. O filme é uma resposta a esse retrocesso social?
Foram anos muito duros, mas que acabaram ressaltando a pertinência de Propriedade. O filme foi rodado antes da eleição de 2018, mas a gestão Bolsonaro cristalizou o ódio entre classes, o desprezo pela vida alheia, a criminalização de segmentos da sociedade. É um veneno que ainda circulará pelas veias do Brasil pelos próximos anos, e o cinema ainda está processando esse momento histórico através de seus recursos. Mas Propriedade dá forma a anseios bem mais antigos. Qual é o ponto de saturação das injustiças sociais? Quão grande é a distância entre pessoas de classes tão distintas no Brasil? O que seria necessário para unir um povo com indivíduos de motivações tão distintas? Essas questões me inquietam há muitos anos e me ajudaram a chegar na forma final do filme.
Por que a opção pela violência explícita na frente das câmeras?
A violência rompe o ordinário. É por isso que o cinema a ama – e é por isso que muitos amam o cinema. No entanto, por mais chocante que seja a violência narrativa de Propriedade, ela atua para evidenciar a violência histórica. Essa sim, mais insidiosa, dá motivação aos personagens e pode reverberar na experiência pessoal dos espectadores. Usar a violência como um cavalo de Troia é uma das possibilidades que mais me atrai no cinema de gênero.
O medo, a angústia e a iminência do perigo estão presentes em todo o filme – isso se dá por meio da fotografia, da atuação do elenco e de uma montagem precisa. Como foi o processo de realização do filme?
Gosto de cozinhar a várias mãos e de receber temperos que não estavam previstos na receita. No caso do Propriedade, formamos uma equipe muito afinada em termos estéticos e políticos. Ou seja, sabíamos da importância da mensagem a ser transmitida, mas sem perder de vista seu caráter de entretenimento. Rodamos o filme ao longo de 25 dias no litoral sul de Pernambuco. Era a época do primeiro turno das eleições de 2018, então filmávamos praticamente encharcados do clima político pesado daquele momento. Espero que isso tenha ficado impresso de alguma forma no filme.
Poderia falar sobre a recepção do filme na Berlinale?
Embora o público do festival tenha origens muito diversas, percebo que o conflito de classes é um tema global. Seja pelo ângulo da dívida histórica gerada pela escravidão, da precarização do trabalho ou das crises migratórias. Propriedade, em sua essência, ainda é uma história sobre o abismo existente entre o lado de fora e o lado de dentro, entre ricos e pobres, entre proprietários e possuídos. Cada país tem suas próprias questões sobre esses conflitos. Espero que Propriedade, tornando-se internacional, possa também contribuir de alguma forma com essas reflexões locais.
Fevereiro de 2023