A cientista social Esther Solano explica em entrevista por que o medo é eficaz como instrumento político.
No ano de 2018, a cientista social Esther Solano realizou uma pesquisa com simpatizantes do então candidato à presidência do Brasil Jair Bolsonaro. Segundo Solano, o medo rondava o eleitor conservador, e a campanha de Bolsonaro manipulou esse sentimento para faturar nas urnas. “A extrema direita sabe muito bem transformar o medo em um sentimento de ódio, contra um suposto inimigo, que pode ser o imigrante, a esquerda, a feminista”.O que o medo tem a ver com a democracia em crise no mundo, com a ascensão da extrema direita e com a eleição de Bolsonaro no Brasil?
A extrema direita sempre tem a ideia do autoritarismo como saída para as crises, e o mundo está em crise. Para ela, a democracia é algo frágil, frouxo, porque se baseia exatamente em uma coisa não qual não conseguem trabalhar bem, que é o consenso entre as diferenças. Eles vendem ao eleitorado a ideia de que a democracia é frágil, só funciona em momento de estabilidade econômica e política, mas deve ser substituída por um governo linha dura na crise. A saída é sempre o fechamento, o autoritarismo, a agressividade, o Estado repressivo, punitivo, o Estado penal.
No cenário brasileiro, temos o Bolsonaro direcionando muito bem o sentimento de medo. No momento em que o país atravessa uma crise econômica importante, política e também social, Bolsonaro conseguiu capturar tudo isso e transformar essas supostas ameaças em moeda de troca eleitoral e política, usando basicamente a metodologia do bode expiratório: tudo é culpa da esquerda, do PT, dos progressistas. Cria-se um inimigo e você torna esse medo em ativo eleitoral. Você precisa de um componente de polarização, de um inimigo político, para você se beneficiar eleitoralmente.
Em um cenário altamente polarizado da política brasileira, como o medo se manifesta no direcionamento político de cada grupo?
O medo é um afeto político que a extrema direita usa muito bem. Ela transforma o medo, que vem da vulnerabilidade, da desesperança, da frustração, e é muito fruto do sistema capitalista, ainda mais no capitalismo periférico e muito complexo e brutal do Brasil. Entre os conservadores, além do medo que vem da crise econômica, de perder seu emprego, seu conforto, há o medo das mudanças, da “falta de ordem”. E a extrema direita sabe instrumentalizar isso, transformar o medo em um sentimento de ódio, contra um suposto inimigo, que pode ser o imigrante, a esquerda, a feminista.
Sobre o campo mais progressista da população, o medo é manipulado com a difusão de métodos de brutalidade. A extrema direita atua com a ameaça, com ações de censura, com a intolerância, com brutalidade repressiva do aparato policial. Porque a extrema direita não considera que o outro seja seu adversário político. Considera o outro como inimigo político, e o inimigo tem que ser aniquilado fisicamente, como vemos na periferia e na perseguição aos indígenas, ou ser exterminado simbolicamente, com a ideia do silenciamento e da censura. Por um lado, instrumentaliza o medo entre os conservadores para se beneficiar eleitoralmente dele, e por outro, usa táticas de terror contra os progressistas para intimidar reações.
Como a política deveria tratar o medo, que é inerente em tempos de crise?
Há duas formas de tratar esse medo. De uma maneira mais progressista, dizendo que os riscos do mundo contemporâneo são justamente o resultado de um sistema que é excludente, e que a gente só vai se salvar desses perigos com um sistema mais inclusivo, mais democrático, mais compartilhado, para um futuro comum. E a outra alternativa, da extrema direita, que atribui os riscos e ameaças a um certo inimigo que traz a desordem, que são os imigrantes, a esquerda, as feministas. Cria-se uma teoria do bode expiratório e em vez de você diminuir o medo, você o potencializa. Assim, eles se beneficiam eleitoralmente elevando o medo à enésima potência. Por isso que Bolsonaro é muito beneficiado nesses tempos.
Fazer da segurança pública um tema é um dos fatores que gera grande ansiedade e medo na população em geral. Como tem sido a resposta política a essa questão?
A esquerda esquiva-se muito em falar da segurança pública. Em um país como o Brasil, onde um dos principais problemas é a segurança, sobretudo para a população periférica, essa postura deixa espaço para a extrema direita assumir o discurso de uma forma punitiva, penalista, moralista, extremamente retrógrada. Seria um dever da esquerda não se furtar a esse debate, que é absolutamente fundamental. Mesmo porque sem encarar esse tema, os progressistas estão jogando eleitores no colo da direita. Eu me lembro que durante minha pesquisa com eleitores bolsonaristas, eles diziam: não concordo muito com o Bolsonaro, mas é o único que fala de segurança pública. .
Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo provoca uma insegurança tremenda e constante no trabalhador. Esse medo, no entanto, não foi suficiente para afastar eleitores de políticos que pregam o Estado mínimo. Como isso se dá?
Dentro de uma arquitetura filosófica do liberalismo, a gente diz que o neoliberalismo é uma forma de vida, uma forma de se entender o mundo. Há um pensamento no neoliberalismo que afirma o seguinte: o culpado da crise política e econômica é a ineficiência do Estado, que é um Estado intrinsicamente corrupto, e naturalmente fisiológico.
Para Bolsonaro foi muito fácil vender essa ideia, ajudado pela operação Lavajato, que trabalhou e disseminou a ideia de que o Estado, a política, os políticos, a coisa pública são corruptos e ineficazes. Então devem ser substituídos pelo Estado mínimo e pelas privatizações. É complicado para uma pessoa entender de fato que os problemas que ela vive são por conta de um sistema excludente, capitalista, isso é hipercomplexo. O discurso meritocrático e do Estado mínimo é muito mais simples, e o da corrupção também. Contra a corrupção, o discurso penalista e punitivo se encaixa muito bem com o discurso do Estado mínimo do neoliberalismo.
O que o medo tem a ver com a negação da política?
Muito da crise da democracia vem da ideia da necessidade do autoritarismo, do golpismo, da ditadura, pois a democracia seria frágil demais e não funciona em momentos de insegurança. Há o discurso de que o culpado pela situação de crise é justamente a política. Porque a política seria uma atividade corrupta, suja, vergonhosa, mentirosa, elitista, fisiológica. Há então a negação da política. A política seria substituída pelo mercado, outros tipos de atores, de mediadores, que estariam aptos a dar uma resposta à situação de precariedade.
Esther Solano é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É Conselheira do Instituto Vladimir Herzog e colunista da revista Carta Capital.
Abril de 2020