No centro do imaginário cultural da América Latina, está o “macho”, bem como uma de suas variantes: o “galanteador”. Esses arquétipos coexistem com um outro: o da mulher forte e independente. Qual é a relação entre essas figuras? Em que medida elas se alimentam mutuamente? A historiadora chilena Andrea Kottow examina os rastros literários dessas questões.
A palavra “macho” – que, sem dúvida, se refere a uma figura masculina estereotipada do universo latino-americano – rima com outra: o “lacho”, termo usado sobretudo no Chile e no Peru para um homem “galanteador”, que é uma espécie de inversão negativa do macho. Em geral, o macho encarna uma virilidade hiperbólica, uma masculinidade que se apoia em sua superioridade e poder inquestionáveis. O galanteador, por outro lado, é uma figura permeada de contradições. Com o macho, ele compartilha sua supremacia sobre as mulheres, mas destaca uma característica que o macho muitas vezes oculta: sua falta de compromisso. O galanteador é uma espécie de nômade amoroso, um Don Juan latino-americano: vai de mulher em mulher, de casa em casa, deixando filhos para trás. Um galanteador não é um “homem da casa”, mas um que vai se instalando por temporadas em diferentes lares liderados por diferentes mulheres. Não é marido nem pai. Essas são posições que ocupa por um tempo limitado. O galanteador é aquele que sai para comprar cigarros e não volta. É o pai que não paga a pensão alimentícia devida a seus filhos e filhas, ou seja, suas crianças abandonadas, ou “huachos”, – que, como os termos “lacho” e “macho”, faz mais uma rima do vocabulário andino – crianças sem um pai que as assuma; um homem que ignora seus deveres conjugais e paternos. Além disso, o galanteador é o homem que faz valer seu caráter de macho quando é chamado a assumir sua responsabilidade. Pois nem o galanteador nem o macho prestam contas a ninguém.O “galanteador” e as complexidades da feminilidade latino-americana
A antropóloga chilena Sonia Montecino, em Madres y huachos – um livro influente nas ciências sociais latino-americanas nos anos 1990 –, interpretou a figura do “lacho” como uma chave para compreender certos traços da cultura latino-americana. Ela alega que a figura do homem conquistador que chega mas não fica aparece desde a Conquista espanhola. É o espanhol que deixou uma mulher, uma família, em sua terra natal, mas que tem suas “necessidades”. É, portanto, potencialmente um homem de várias mulheres e de vários lares, de filhos não assumidos espalhados pelo mundo. A figura do galanteador, segundo Montecino, pode ser rastreada em diversas produções culturais latino-americanas, pois se converte em uma constante social durante o período colonial e, mais tarde, após a independência dos países latino-americanos da coroa espanhola.No romance El roto, escrito em 1920 pelo chileno Joaquín Edwards Bello, as coordenadas do galanteador são traçadas a partir do personagem Fernando, que se instala temporariamente na casa de Clorinda, mãe do protagonista Esmeraldo. O pai de Esmeraldo é um bêbado que está na prisão. Clorinda administra um prostíbulo e Fernando, seu amante, vai e vem a seu bel-prazer, sem se responsabilizar nem pelos sentimentos da mulher nem pelo filho postiço que cresce a seu lado. É dado ao jogo, ao álcool e às mulheres. Quando desaparece um belo dia, embora isso cause tristeza e desolação, não é nenhuma surpresa. É assim que as coisas são, que têm sido e sempre serão – é o que parece indicar a atitude de Clorinda. Tal como chegou, Fernando se foi.
Que tipo de mulher é essa que o galanteador deixa para trás? É, de fato, uma mulher forte, autossuficiente, que pode cuidar de si mesma. Uma mulher que toca a casa e os filhos. Talvez, poderíamos especular, seja uma mulher desconfiada e, em certa medida, desencantada do gênero masculino. Mas também é uma mulher que sustenta esses “machos-lachos”. Como se diz um pouco maniqueisticamente na América Latina: por trás de cada macho há uma mulher que possibilita sua existência.
Manifestações e camuflagens do poder feminino
O que acontece com essa mulher que associamos à cultura latino-americana, que “veste as calças”, mas que, apesar disso, em geral não derrota o macho e o machismo? Parece existir uma contradição entre essa ideia – muito inserida no imaginário coletivo latino-americano – de uma figura feminina forte, por um lado, e, por outro, a ideia do macho, difícil de negar na cultura do continente. Para dar apenas dois exemplos: por um lado, estão as Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, ou as mulheres que dançam a chamada “cueca sola”, no Chile, em ambos os casos para protestar pelas pessoas desaparecidas nas ditaduras desses países. E, por outro lado, há as mulheres que continuam a se deixar tratar como objetos sexuais (inclusive nas letras de reggaeton, atualmente um dos produtos de exportação de maior sucesso da América Latina para o resto do mundo).Mas voltemos à literatura. No romance El loco estero (1909), do também chileno Alberto Blest Gana, a herdeira Manuela conseguiu declarar como louco seu irmão e rival Julián, confinando-o sem acesso aos bens da família. A força e energia de Manuela ainda expulsaram seu marido, uma alma romântica e neurastênica, para ler no jardim, onde ele se consola com romances sobre aventureiros solitários. Para provar que é ela quem manda, Manuela aceitou como amante um oficial da força civil, aliando-se, assim, com o poder efetivo. Esse tipo de mulher – forte, empoderada, chefe de família, no comando não apenas dos assuntos familiares, mas também dos econômicos – conta, ao mesmo tempo, com uma tradição clara na literatura latino-americana. Provavelmente Dona Bárbara, a protagonista do romance homônimo escrito em 1929 pelo venezuelano Rómulo Gallegos, seja um exemplo mais paradigmático: uma femme fatale poderosa e implacável. Uma dona de fazenda que dispõe da terra e de sua gente.
Agora, a presença do poder feminino não se apresenta na literatura latino-americana apenas na figura da mulher que assume o lugar do homem e o feminiza. Também se apresenta como uma força alternativa, um poder oculto que trabalha na sombra, burlando o poder masculino pelas costas. Em seus contos, a escritora argentina Silvina Ocampo retrata a conspiração feminina, as alianças feitas pelas mulheres para conseguir o que querem sem que os homens percebam. Também nas obras do escritor argentino Manuel Puig, são as mulheres que, enganando o poder do homem, deixando este acreditar que o continua tendo, fazem e desfazem conforme seus gostos e necessidades. Uma dupla muito prototípica desse tipo de cumplicidade é a da mãe e seu filho homossexual, que continuam a fazer o pai acreditar que tudo segue seu curso “normal”.
Coexistência do poder feminino com a ordem patriarcal
Outros exemplos da representação de um poder feminino que coloca outros valores em jogo, outras estratégias diferentes das tradicionais, mas que também deixam intacto o poder masculino e o sistema patriarcal, podem ser encontrados nos livros de Isabel Allende, ou no romance da autora mexicana Laura Esquivel Como água para chocolate (1989), popularizado pelo filme homônimo. Neles, acontece algo particular: os espaços tradicionalmente femininos – o doméstico, o culinário – se convertem em lugares de onde o poder é exercido. Esse poder, porém, permanece invisível, e, para ser implementado, preserva o sistema de sexo e gênero dominante.Assim, uma viagem pelo tempo rastreando as figuras de mulheres e do feminino na cultura latino-americana nos apresenta um panorama complexo. Vemos a tradição de um poder feminino que teve que se arranjar com homens que estão ausentes ou abandonam, o que levou as mulheres a assumir o lugar de provedoras dos lares e chefes de família. E também vemos a reminiscência inegável de um forte machismo que não foi eliminado e que, ao menos parcialmente, é sustentado pela encenação de uma força própria ao feminino, que atua sem se colocar em evidência nem exigir seus direitos.