Os espaços urbanos do mundo são projetados majoritariamente por homens e criados para atender às necessidades de pessoas do gênero masculino, brancas, de classe alta e com plenas capacidades físicas. Fortalecer uma arquitetura feminista é, portanto, uma questão de poder.
“Como mulher, minhas próprias experiências urbanas cotidianas estão profundamente marcadas pelo gênero. Minha identidade de gênero determina como me movo pela cidade, como vivo meus dias, quais opções tenho disponíveis. Meu gênero é algo mais amplo que meu corpo, mas meu corpo é o lugar da minha experiência vivida, ali onde minha identidade, minha história e os espaços que habitei se cruzam, onde tudo isso se mistura e fica escrito na minha pele. Meu corpo é o espaço a partir do qual escrevo. É o espaço, no qual minhas experiências me levam a perguntar coisas como: por que o carrinho de bebê não cabe no bonde? Por que tenho que caminar um quilômetro a mais para chegar em casa sozinha, já que o atalho é demasiado perigoso? Quem buscaria minha filha na creche, se eu fosse detida na manifestação contra o G20? Essas não são apenas perguntas pessoais, mas questões que vão ao cerne de como e por que as cidades mantêm as mulheres ‘em seu devido lugar’”.Assim escreve a geógrafa canadense Leslie Kern em Feminist City: Claiming Space in the Man-Made World (Cidade Feminista – a luta pelo espaço em um mundo projetado por homens), publicado originalmente em inglês em 2019, lançado em 2020 na Argentina pela Ediciones Godot e que deve chegar ao Brasil em 2021. A obra redigida em primeira pessoa, a partir de uma perspectiva anglo-saxônica, se junta a outras publicações que buscam refletir sobre o espaço urbano levando em conta a questão de gênero.
“O mercado profissional da arquitetura é extremamente machista e as cidades são construídas majoritariamente por homens, feitas para atender às necessidades de pessoas do gênero masculino, brancas, de classe alta e em idade com plenas capacidades físicas”, afirma a arquiteta argentina Zaida Muxí Martínez, professora da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona e autora de livros como Mujeres, casas y ciudades: Más allá del umbral (Mulheres, casas e cidades: além do limiar), publicado na Espanha em 2018. “É importante incorporar a diversidade na hora de planejar uma cidade, porque homens e mulheres utilizam esse espaço de forma diferente em função dos papeis sociais e culturais atribuídos a cada gênero”, completa Muxí Martínez.
Deslocamentos fragmentados
Isso fica evidente em relação à mobilidade. “Muitos estudos mostram que as mulheres se deslocam de forma fragmentada pela cidade. Isso porque, além do trabalho remunerado, em sua maioria também são responsáveis pelas tarefas de cuidado, como levar e buscar os filhos na escola, por exemplo”, diz a arquiteta brasileira Danielle Klintowitz, coordenadora geral do Instituto Pólis. “Pensar a mobilidade urbana por uma perspectiva de gênero é pensar, entre outras coisas, em linhas de transporte coletivo que tenham maior capilaridade e possibilidades de paradas para atender às necessidades de deslocamento das mulheres e que considere a segurança pelos trajetos percorridos, bem como levar em conta tarifas mais acessíveis”.Segundo dados divulgados pelo Instituto Pólis, as mulheres utilizam mais transporte público coletivo e andam a pé (74%) do que os homens (62%) na região metropolitana de São Paulo. “Nas cidades brasileiras, herdeiras do colonialismo escravista patriarcal, essa é, sobretudo, a realidade das mulheres negras e periféricas que passam por várias conduções para chegar ao trabalho”, aponta a arquiteta brasileira Bethânia Boaventura, especialista em políticas urbanas e desigualdades sociais. Muitas dessas mulheres, continua Boaventura, são empregadas domésticas e vão assumir funções domésticas para que a mulher branca possa trabalhar fora. “Por outro lado, as mulheres brancas, que no país pertencem em sua maioria às classes sociais mais altas, se locomovem de carro e estão menos expostas ao assédio e outras violências de gênero e sexual nas cidades”.
Insegurança e assédio
Além da mobilidade, a questão da segurança também é diferente para pessoas que se identificam com os gêneros masculino ou feminino. Pesquisa realizada com 800 mulheres na Argentina, em 2019, pelo Movimento Mujeres de la Matria Latinoamericana, apontou que 96% das entrevistadas haviam sofrido assédio sexual nas ruas e 81% se sentiam inseguras ou muito inseguras no espaço público, sobretudo adolescentes entre 15 e 19 anos. Além disso, 93% das mulheres ouvidas evitavam passar por lugares escuros, 54% delas buscavam usar roupas que não chamassem atenção para seus corpos e 81% faziam rotas alternativas para escapar de assédio sexual. Vale dizer que alguns países da América do Sul já possuem legislação contra assédio sexual em espaços públicos, a começar pelo Peru, que estabeleceu tal medida em 2015, seguido pelo Chile e pela própria Argentina, ambos em 2019.Uma cidade pensada a partir da perspectiva de gênero prevê, portanto, ruas seguras, o que inclui, entre outras coisas, iluminação adequada e diversidade de usos com comércios e serviços abertos em diferentes horários. “É claro que os homens também sofrem violência no espaço urbano, mas que está, sobretudo, ligada à questão material, como o roubo de uma carteira. Já as mulheres precisam moldar seu comportamento para sair de casa. Elas precisam escolher, entre outras coisas, a roupa adequada, o horário mais seguro, o meio de transporte onde não vão sofrer tanto assédio ou precisar esperar muito tempo no ponto”, constata Paula Freire Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e uma das coordenadoras do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), ambos da Universidade de São Paulo. “A violência de gênero restringe a mobilidade e a liberdade das mulheres e essa sensação de medo se agrava entre a população LGBTQ+”.
Cidade de e para as mulheres
Foi por volta da década de 1970 que a perspectiva de gênero entrou no radar da arquitetura e do urbanismo em nível mundial. Um dos exemplos pioneiros nesse sentido é a cidade de Viena, na Áustria, que no final dos anos 1990 criou o conjunto habitacional Frauen-Werk-Stadt (a cidade como obra das mulheres, em um jogo sonoro de palavras que alude à ideia de Frauenwerkstatt, ou seja, oficina de mulheres), reunindo serviços como farmácia, creche e consultório médico. “Vejo algumas cidades avançando nesse sentido, como é o caso de Barcelona, que nos últimos anos tem feito, por exemplo, creches mais próximas dos locais de trabalho ou de moradia, mas temos muito ainda a avançar”, aponta Klintowitz.No Brasil, esse desafio é ainda maior, na opinião de Santoro. “Aqui falta o básico: em muitos lugares do país não existem creches, escolas ou postos de saúde”, diz. “Mas não podemos abrir mão dessa pauta e deixar de discutir questões, como por que os trocadores dos bebês ficam apenas nos banheiros femininos em espaços públicos, como shopping centers e restaurantes”. Para Boaventura, uma das formas dessa pauta seguir adiante diz respeito à maior participação das mulheres em espaços de decisão. “Obviamente, não me refiro às mulheres que reproduzem o papel do opressor, mas sim àquelas que lutam por uma cidade sem opressões”, pontua. “Uma cidade assim é boa não apenas para as mulheres, mas para todo mundo”, conclui.