Com a avalanche de “lives” em torno de todos os assuntos, mal deu tempo de sentir falta da vida cultural “ao vivo” nas cidades. Mostras foram transformadas às pressas em exposições online e a arte migrou em caráter de urgência para as redes. No mundo onde as relações sociais virtuais se tornaram mercadoria, ainda se pode falar de proximidade?
Se há um ponto em comum entre trabalhos de arte que nascem na internet é a vontade de ocupar outros espaços não convencionais, buscando alternativas aos sistemas limitadores de instituições ou do mercado de arte. Assim foi o início da net art, que explodiu nos anos 1990 ainda influenciada pela utopia tecnológica da década anterior, quando se olhava para a internet como um ambiente democrático, onde era possível criar de forma livre e alcançar um público mais diverso. Não foi bem essa história do movimento uma década depois, quando grandes corporações começam a surgir colonizando a paisagem e os espaços informacionais não parecem tão diferentes dos espaços reais.Mas o que acontece quando, de uma hora para outra, esse se torna o único lugar possível, e a separação entre o que antes chamávamos de real e virtual parece uma discussão obsoleta e abstrata? Foi um pouco essa a primeira sensação logo que começou a quarentena em meados de março de 2020, se estendendo quase indefinidamente, como é o caso no Brasil. De repente, fomos invadidos por uma programação infindável de lives de todos os assuntos, de forma que mal dava tempo de sentir falta da vida cultural “ao vivo”, de fato, nas cidades.
Na arte contemporânea, se já era difícil acompanhar o excesso de feiras e exposições, enquanto o mundo parava tudo parecia continuar acontecendo em uma estranha normalidade: mostras transferidas para versões online sem tempo de planejar algo específico para esse formato, como foi o caso da Bienal do Mercosul, listas e mais listas de todas as visitas guiadas disponíveis ou hashtags para seguir “agora que o mundo da arte migrou para as mídias sociais” e até uma febre de campanhas colaborativas criadas por museus, como desafios diários de desenho ou fotos com reencenações de obras famosas nos espaços domésticos.
Produção excessiva e exposição intensa
Para quem pesquisa imagens de obra de arte e produções artísticas em redes sociais, ou para artistas que há tempos utilizavam essas mídias como espaço de produção, a sensação era de que a repentina migração de tudo e mais um pouco para essas plataformas tornou esses ambientes já tão saturados ainda mais inóspitos. Quem de fato está interessado em ver tantos trabalhos artísticos tendo que lidar com a falta de emprego ou outras ansiedades maiores trazidas pela pandemia? O ensaio Parem a competição já, escrito em abril último pelos artistas brasileiros Daniel Jablonski e Flora Leite para a revista brasileira seLecT, questiona se é mesmo necessário produzir e se expor de forma tão intensa em tempos como esse e traz pontos importantes, embora tenha gerado outra discussão sobre quem tem o privilégio de não precisar batalhar tanto por visibilidade.Ainda não foi traçada uma historiografia muito completa da produção artística em redes sociais, mas já é possível pensar em algumas vertentes surgidas ali. Criado em 2010, o Instagram é ainda o principal exemplo que influenciou tanto a criação de uma nova cultura visual marcada por memes, selfies, fotos de animais e comida, quanto de trabalhos artísticos que mimetizam essa linguagem e se misturam a tudo isso.
Um dos mais conhecidos é o Excellences & Perfections (2014), da artista argentina radicada em Nova York Amalia Ulman. Sem anunciar claramente que seria uma performance, ela foi assumindo o papel de uma it-girl de Los Angeles em diversas fases ao longo de seis meses, ganhando milhares de seguidores que não percebiam se tratar de uma paródia. Embora tenha a consagrado e seja hoje uma referência de obras surgidas em redes sociais, o projeto só ganhou uma maior aceitação quando foi incluído em mostras de grandes instituições, como a Whitechapel Gallery e a Tate Modern, ambas em Londres.
Autorrepresentação como performance
Assim como em seu projeto posterior Privilege, também realizado no Instagram entre 2015 e 2016, a artista demarcou um tipo de produção artística em redes criando identidade fictícias a partir de si mesma – uma ideia de autoficção ou autorrepresentação como performance. Seu trabalho mais recente – Sordid Scandal (2020), comissionado pela Tate Modern e exibido no site do museu – não acontece mais no Instagram, mas incorpora uma cultura dessas mídias, onde novas identidades são criadas e desfeitas diariamente. Apresentado na forma de um vídeo-ensaio, o enredo mistura acontecimentos da biografia de Ulman com outros fatos fictícios envolvendo uma disputa familiar e heranças de um passado colonial.A artista brasileira Aleta Valente é outro exemplo que também surge no Instagram explorando a autorrepresentação com performance. Sua personagem ex_miss_febem3 – hoje na terceira conta, depois das duas anteriores terem sido derrubadas por excesso de denúncias – já passou por diversas fases, e tem em comum com Ulman o humor ácido e a paródia de estereótipos comuns nas redes. No início, Valente usava mais sua própria imagem documentando um cotidiano no bairro periférico de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que deslocava a representação do corpo feminino do erotismo para um lugar que provoca uma certa perturbação – como uma série em que se retratava menstruada.
Interseção entre redes e espaços públicos
O projeto #CóleraAlegria, ação colaborativa de caráter político organizada por meio desta hashtag, é um dos exemplos recentes mais interessantes por criar formas de ocupar as redes na contramão de discursos moralizantes que dominam os espaços digitais. Embora o trabalho aconteça essencialmente enquanto imagens em rede, ramificando-se entre esta e outras hastags, é igualmente importante sua presença no espaço público.Outra ação artística coletiva que só existe em diálogo com os espaços físicos é o Tubinambá Lambido, com trabalhos colados na cidade do Rio de Janeiro na forma de lambe-lambe. Definindo suas ações como estético-políticas, eles partem também de ideias de infiltração midiática com mensagens de protesto inseridas em locais urbanos de grande circulação ou disseminadas por meio de imagens na hashtag #tupinambalambido. Há também hackeamentos de grandes marcas de comunicação, estratégias comuns no início da net art, como o cartaz que usa o logotipo do jornal O Globo trocando pela palavra O Golpe.
Novo tipo de colonialismo
A lógica da inserção tática parece ser a melhor estratégia para lidar com a ocupação das redes, plataformas cada vez mais comercias e com políticas controversas sobre o uso de dados. A prática é identificada pelos autores Nick Couldry e Ulises A. Mejias em The costs of connection (Os custos da conexão, em tradução livre), como um novo tipo de colonialismo, em que as relações sociais se tornaram o grande alvo de extração lucrativa.Embora ainda seja cedo para tirar conclusões, o que parece mais provável é que o uso dessas mídias por artistas se torne mais uma ocupação temporária, usada como forma de se aproximar de um público impedido provisoriamente de ir às ruas – o que coloca as redes mais como espaço de informação e documentação do que de criação artística propriamente dita. Mesmo no caso de Amalia Ulman, identificada como a primeira artista a usar o Instagram como mídia, ela já declarou que a performance Privilege foi a última realizada na plataforma. Ainda assim, a cultura visual surgida ali ainda vai romper os limites desse aplicativo e contaminar práticas artísticas por um bom tempo, mesmo que não aconteçam mais naqueles espaços.
Outubro de 2020