O antropólogo chileno Jens Benöhr fala sobre o diálogo entre diversos saberes, o papel dos esportes aquáticos e a participação das comunidades locais nos processos de recuperação de rios no Chile.
Durante três décadas, o antropólogo Jens Benöhr manteve um diálogo contínuo com a água. A conversa começou na linguagem da brincadeira, durante sua infância, quando Jens caminhava pelas margens do rio Biobío, o mais largo do Chile.Mais tarde, Jens e seu amigo Paulo Urrutia desceram o Biobío fazendo rafting de caiaque enquanto recebiam as mensagens inequívocas das forças aquáticas. Mais recentemente, sobre uma prancha de surfe, Jens começou a aprender a linguagem da água salgada no mar enquanto experimentava as ondas da costa do Pacífico em seu país.
“O caiaque me ensinou humildade. O rio não precisa de nós; ele tem muita força e, mesmo que ele agora tenha um muro de barragem hidrelétrica atravessado, mais cedo ou mais tarde esse muro vai ceder, mesmo que daqui a algumas centenas de anos, que não são nada para um rio... O mar me abriu à outra maneira de falar que a água tem. Isso requer olhar muito para o horizonte, ver a água que se funde com o céu... Isso me ensinou como lidar com a ansiedade. Também me assusta, mas estou aprendendo. O rio é liberdade, o mar é vastidão.”
Esse jovem explorador chileno nos conta o que aprendeu nesses diálogos líquidos, suas experiências com a restauração biocultural usada para recuperar ecossistemas aquáticos e as maneiras pelas quais as visões de mundo indígena, ocidental, espiritual e científica podem se integrar para que possamos viver em maior equilíbrio com a água e com a natureza em geral.
O Chile é um país longo e estreito, repleto de rios. Inclinado sobre a Cordilheira dos Andes, o país “pinga” água doce no mar. Atualmente existe um movimento político e cultural muito dinâmico para a defesa dos cursos d'água. Novas e velhas lideranças bebem da sabedoria indígena do país – como a dos Mapuche –, advinda de comunidades muitas vezes instaladas nas bacias hidrográficas, e com uma visão dos rios como seres vivos, seres sagrados, doadores e tomadores de vida.
Esse é o principal contexto em que Jens, de família paterna alemã, família materna colombiana e natural da cidade de Concepción, se interessou profundamente pela água. “A água é um elemento do qual muitas espécies dependem, mas, além disso, a água para mim é um portal que nos conecta com nosso próprio corpo, com a memória da terra e com nossa origem biológica. Quase a totalidade de nossas células é água, por isso sinto que ela é um portal para as emoções. Há uma razão pela qual a água sai de nossos olhos quando choramos, certo?”, indaga ele.
Como educador ambiental, articulador e participante de diversos projetos em torno da água, Jens compartilha três lições importantes que aprendeu através de seu trabalho: o desfrute, o diálogo horizontal entre as diferentes visões e a restauração biológica.
Desfrutar de estar vivo na natureza
Isso de “salvar o planeta” soa para Jens algo muito messiânico, além de impossível – o que não significa que tenhamos de nos sentar e esperar. Você tem que pular na água, se molhar, colocar as mãos na lama, mas, acima de tudo, aproveitar, sentir e aceitar a realidade.Jens localiza a origem dessa perspectiva em uma memória específica: estando com seu amigo Paulo Urrutia, com quem desceu de caiaque o rio Biobío, eles se viram meio congelados ao anoitecer, quando saiu uma enorme lua verde que queriam fotografar. “Ficar ali, mortos de frio, vendo aquela lua gigantesca, me fez sentir que era estranho querer nos expor ao frio e a um desconforto como esse, mas também entendi que queria fazer um trabalho que me fizesse sentir assim muitas vezes. A foto ficou horrível, mas reafirmei que meu interesse era fazer um trabalho ligado à natureza não apenas por uma questão colaborativa, mas por um desejo egoísta meu, que acredito ser importante: aproveitar a vida como um humano em um planeta que flutua no espaço”, confessa.
Diálogos horizontais e sem julgamentos
Como conciliar visões de mundo tão diferentes quanto a que usa a água como um recurso que pode ser explorado e outra que a vê como um ser vivo com direitos? As novas gerações estão cada vez mais conscientes de que um rio poluído com resíduos de mineração, ou desviado de seu curso com muros de contenção, prejudica o meio ambiente e todos os seres que nele interagem, incluindo os humanos.No entanto, ainda há muito a ser feito para entender visões alheias às suas. “É muito enriquecedor quando se estabelecem pontes de diálogo sincero entre a ciência ocidental e as cosmovisões: uma nutre a outra. Graças a isso, é possível conciliar duas visões como estas: segundo um lado, quando a água é cuidada, seus espíritos são protegidos e a harmonia se instala; segundo a visão científica do outro, a presença de diatomáceas na água – microalgas que vivem num estuário ou no mar – funciona como um indicador da saúde de um ecossistema. Em outras palavras, a água pode ser um recurso, mas, ao mesmo tempo, pode ser um ser vivo”, observa.
Restauração biocultural
Por fim, Jens fala sobre a restauração biocultural como ferramenta para recuperar sistemas biológicos, mas também florestas ou pântanos culturais. “A importância está nas relações, mais do que nos elementos em si. Por exemplo, plantamos espécies nativas porque são um símbolo de resistência contra o colonialismo representado pelas monoculturas de pinheiros e eucaliptos no território do Parque Nacional Nahuelbuta. O pinheiro e o eucalipto têm gerado erosão profunda do solo porque consomem muita água. Ao mesmo tempo, esses cultivos também provocam uma erosão do conhecimento, das relações e da confiança. O extrativismo destrói a confiança através, por exemplo, da corrupção disseminada por empresas que dão dinheiro a alguns líderes e, assim, separam uns dos outros. Restaurar a confiança da comunidade leva anos de trabalho.”Entre os exemplos, podemos citar a iniciativa Kümelko, que integra pessoas do grupo Mapuche Lafquenche para restaurar espécies nativas que foram substituídas por monoculturas de pinho e eucalipto. Outro exemplo é o Somos Cuenca, um projeto que articula grupos de pessoas para trabalhar em prol de uma visão comum das bacias hidrográficas onde habitam, como no caso do rio Wazalafquen.
“E agora estamos trabalhando com alguns amigos na ideia de um RPG ambientado no território de Nahuelbuta, onde há florestas guardiãs da água que foram fragmentadas. A ideia é criar um jogo de RPG através do qual possamos ver o valor da natureza, explorando a região como se fôssemos aventureiros e capazes de recuperar o diálogo ancestral com as florestas de água, com os pitantros e com os espíritos e conhecimentos que habitam essas florestas. Lá o caiaque vai ser uma ferramenta fundamental. Haverá personagens, níveis e batalhas, tudo de uma perspectiva muito épica e também indígena. Por fim, vamos sonhar com o futuro e o passado por meio desse jogo de RPG no território”, conclui.