Bengasi, Líbia  Como eu e o Porto de Bengasi crescemos e mudamos juntos

Wissam Hassan Al-Kawafi olha para a câmera. Atrás dele, você pode ver o oceano e a silhueta do Porto de Benghazi.
Wissam Hassan Al-Kawafi © Hendia Alashepy

Durante mais de duas décadas, Wissam Hassan Al-Kawafi foi desenvolvendo uma ligação profunda com o Porto de Bengasi, onde ele é recebido todas as manhãs por rostos familiares, ao som pulsante da vida marítima.

É um lar fora de casa. Mais de 20 anos promovendo e construindo este relacionamento fizeram do porto de Bengasi uma segunda casa para mim. E tenho a sorte de dizer que, depois de tantos anos, não estamos cansados um do outro.

Mapa onde você pode ver onde fica o Porto de Benghazi. © Canva

Sei disso porque, todas as manhãs às 7h em ponto, nós dois estamos ansiosos para começar o dia. As várias camadas de pontos de controle de segurança do porto se abrem uma a uma para me deixar passar, e sou recebido com saudações, aplausos e boas-vindas calorosas. É uma familiaridade e espontaneidade que compartilho com o porto e suas pessoas, apesar do meu uniforme branco formal da Marinha e das armas, uniformes e posturas dos guardas. Aqui, como no resto da Líbia, a interação humana é valorizada.

Meu nome é Wissam Hassan Al-Kawafi, 45 anos, ainda solteiro. Meus amigos me provocam e dizem que estou tão ligado ao porto que não tenho tempo ou necessidade de me estabelecer e constituir uma família. De certa forma, isso é verdade. Estou tão contente com minha vida e com seu ritmo e rotina – nos quais o porto desempenha um papel fundamental – que não senti  necessidade de outra vida.
Wissam Hassan Al-Kawafi usa um uniforme militar, óculos de sol, e olha para a câmera. Ele está sentado no banco do motorista de seu carro.

Wissam Hassan Al-Kawafi, 45 anos, testemunhou as mudanças no Porto de Bengasi ao longo das últimas décadas. Sua trajetória foi repleta de vitórias e traumas. | © Hendia Alashepy

Minha jornada com este porto, espalhado por uma área de 4.400 quilômetros quadrados, testemunhou duas fases. Trabalho no Departamento de Inspeção Marítima do Porto de Bengasi desde 2003. Ao longo desses anos, esse tem sido um relacionamento tranquilo e constante, no qual passei a notar e valorizar os detalhes do porto, os minúsculos e os grandes. Desde o zumbido dos guindastes e o bater das ondas até o guinchar das gaivotas e a tagarelice dos trabalhadores na hora do almoço. E também a quietude, que mais recentemente temos experimentado bem mais.

No entanto, minha relação com o porto nem sempre foi tão pacífica. Antes de 2003, tinha trabalhado como oficial marítimo a bordo de navios que transportavam mercadorias e commodities. Em 2002, sobrevivi por pouco a um afogamento quando estava a bordo do navio Ibn Hawqal, que afundou perto da costa argelina. Eu e mais 11 membros da tripulação de 34 pessoas sobrevivemos.

Durante meses, me senti traído pelo ambiente que achava conhecer bem: o porto, o mar e os navios. Durante meses, os pensamentos que dominavam minha mente estavam relacionados a nosso afogamento, à morte de meus amigos e às nossas operações de resgate. Após esse incidente, não esperava poder trabalhar novamente nos domínios do porto.

Mas então esse trauma deu lugar a uma compreensão melhor e mais profunda da vida, de mim mesmo e do meu ambiente de trabalho. Uma forma diferente de relacionamento foi se desenvolvendo: uma que se baseia no respeito mútuo entre o porto e mim, em vez de não valorizá-lo, como fazia anteriormente. Passei a respeitar a grandiosidade do porto e seus elementos de uma maneira que não havia feito antes. E quando voltei ao porto, ele estava lá para mim, como um amigo leal e um companheiro para toda a vida.

E assim uma jornada diferente começou com este porto. Uma que a maioria do povo da Líbia não aprecia. Embora os aeroportos sejam frequentemente lembrados como lugares onde as pessoas se separam ou se reúnem com seus entes queridos, onde novos capítulos começam a partir do fim de outros, os portos não são pensados da mesma maneira – embora tenham testemunhado muitos finais e começos drásticos.

Eu mesmo testemunhei alguns desses começos e fins. Tendo trabalhado na inspeção marítima por tantos anos, posso testemunhar que aquilo que inspeciono mudou significativamente, pois os navios que param no porto não são os mesmos Anos atrás, no início dos anos 2000, os domínios do porto marítimo de Bengasi ficava lotados com passageiros de todas as esferas da vida e de todo o mundo, cujos navios e cruzeiros paravam ali por um ou dois dias, a caminho de diferentes destinos. O porto era visto como qualquer outro: um lugar seguro, com uma história e pessoas. Em 2000, havia multidões de mulheres, homens e crianças que passavam horas em frente aos navios para carimbar suas passagens para a Itália, o Cairo, Marrocos e a Grécia, a bordo dos navios líbios Toledo, Filadélfia, Qaryounis e outros. Sempre havia um tráfego de passageiros e pessoas indo e voltando ao longo do porto e de seu pátio.

Eu ficava perto do salão dos oficiais, vestindo orgulhosamente meu uniforme militar branco e meu chapéu cravejado com a águia dourada na frente, que simboliza as forças navais da Líbia. Junto com meus colegas oficiais, ouvia as muitas línguas nas quais os passageiros se comunicavam. Eventualmente começamos a captar palavras de cada um desses idiomas. Gostávamos de ver as pessoas, que muitas vezes nunca haviam pisado na Líbia antes, descobrindo as instalações. Sempre adorei como nosso porto era o ponto de entrada desses estranhos e, às vezes, a única interação que eles teriam com o país.

Observávamos aqueles que estavam nervosos, sem saber para onde ir, e oferecíamos ajuda. E as mulheres segurando firmemente seus filhos inquietos, temendo que eles caíssem ou brincassem perto do cais, ou as senhoras mais jovens em vestidos sumários se aquecendo ao sol da Líbia e olhando animadamente para o mar. Todos esses rostos eram faces do porto que eu vim a amar.

Em 2014, um capítulo totalmente novo começou. O porto e as áreas com vista para o mar em Bengasi, incluindo Al-Sabri, Jaliana, Al-Lathama e Qanfouda, bem como o resto das regiões e bairros da cidade, testemunharam batalhas ferozes que eclodiram entre as forças do Exército Nacional e os grupos armados e terroristas. Grupos armados estavam contrabandeando armas, munições e mercenários – árabes, africanos e estrangeiros – do porto para a cidade, por meio de pequenas embarcações. Essas ações alimentaram a guerra até que essas travessias marítimas caíram na mira e foram interditadas para eles.

Esses dias foram muito pesados para todos nós. As cicatrizes profundas deixadas por essas batalhas ainda são visíveis na face do porto, apesar do trabalho de manutenção em andamento. No ancoradouro leste, você pode ver os danos causados na parede pela artilharia pesada. Algumas das principais instalações foram completamente destruídas e demolidas como resultado do bombardeio de mísseis.

Durante aqueles anos, o porto sofreu grandes danos e, embora alguns deles possam ser corrigidos, aquele lugar nunca voltou ao que era antes. O tráfego marítimo cessou completamente nesse período, exceto para receber navios de ajuda e resgate. Desde a libertação de Bengasi, em 2017, os trabalhos de manutenção começaram dentro do porto, mas os cruzeiros de passageiros continuam evitando suas docas. Hoje em dia, apenas um navio de passageiros atraca aqui, operando na linha Bengasi-Misrata-Turquia, em um ritmo muito baixo e com um número ainda menor de passageiros.

O movimento de outros navios, aqueles empilhados com fileiras e mais fileiras de carga e contêineres, não é afetado e permanece, de fato, estável e forte. Como ondas, eles também continuam fluindo. Os navios comerciais, ao contrário dos civis, não têm pressa. Os enormes cargueiros permanecem na entrada do porto marítimo com vista para o Mar Mediterrâneo por períodos que podem durar semanas, esperando permissão para cruzar para o ancoradouro.

E sou eu quem controla esse movimento e tráfego. Inspeciono tudo nesses navios, desde seus equipamentos de segurança, seus papéis e botes salva-vidas, até seu conteúdo, carga e equipe. Uma vez liberados, os navios se aproximam das docas e toda uma reação em cadeia se inicia: os trabalhadores começam a descarregar os navios, os caminhões vão chegando às baias de espera para carregar a carga, empilhadeiras e guindastes levantando e organizando contêineres, e até mesmo o refeitório do porto testemunha ações com tripulantes de todas as origens, que param para comer e beber.

Ter essa autoridade sobre uma instalação tão grande e os processos e ações que ela implica me traz humildade e me revigora. Sem minha assinatura, os navios poderiam esperar dias e, com isso, muita coisa ganha vida em minha segunda casa.

Este texto foi publicado em colaboração com Egab.