Artes visuais   Memórias que a água guarda

Pontes sobre abismos, 2017
Pontes sobre abismos, 2017 Aline Motta

A água pensada como veículo que estabelece relações entre diferentes tempos, espécies e geografias é tema presente no trabalho das artistas brasileiras Aline Motta e Laís Machado.

Há algo de arquitetônico nos títulos dos trabalhos da artista brasileira Aline Motta, como se anunciassem uma estrutura antecedendo uma quebra súbita no ciclo linear do que veremos a seguir. As histórias são contadas sob arranjos temporais não convencionais e se conectam por lógicas inesperadas. “Estou grávida da minha mãe. Chegou a minha vez de te carregar na barriga”, escreve a artista na abertura do livro de poemas A Água é uma máquina do tempo (2022), que originou o texto da videoinstalação homônima apresentada na 35ª Bienal de São Paulo (2023), lido por ela em off.

Logo nas primeiras cenas, vemos a Baía de Guanabara e a ponte Rio-Niterói ao fundo. A cidade fluminense é seu lugar de origem, onde passou parte considerável da vida atravessando diariamente a barca que a separa da capital. “A água foi meu principal meio de transporte por muito tempo. Já vi de tudo nessa travessia pelo mar”, lembra a artista.

Fabulação crítica

Suas memórias da infância, de quando era levada pelo pai para as aulas de natação em frente à praia de Icaraí, são evocadas em textos e imagens na segunda parte do filme. Em uma das passagens mais bonitas, vemos fotos de seu arquivo pessoal projetadas sob os alicerces da ponte Rio-Niterói e refletidas na água. O mar é usado também como metáfora para falar de racismo – ou, no caso, do silêncio sobre o assunto. “Discutir racismo na minha família era como entrar naquela parte do mar em que não dá mais pé. Se fosse chamado pelo nome, o equilíbrio familiar se quebraria, e a corrente nos levaria à deriva”, escreve.

Em Água é uma máquina do tempo, Aline Motta entrelaça as diversas histórias de seu passado familiar, sejam elas reais ou fabuladas. O termo “fabulação crítica”, usado pela escritora e acadêmica estadunidense Saidiya Hartman, é a principal referência para sua abordagem artística, que combina materiais de arquivo, especialmente jornais e documentos, com outras práticas de memória de uma esfera pessoal. Trechos do diário da mãe, encontrados logo após sua morte, são incorporados em uma narrativa que se aproxima do gênero literário conhecido como ficção especulativa. Aquela voz, até então desconhecida pela família, é ecoada 30 anos depois pela voz da filha, ganhando outros sentidos no presente.

Conexões atlânticas sobre história familiar

O título dessa obra conclui um pensamento que vinha sendo elaborado pela artista em séries anteriores. Desde Pontes sobre abismo (2017), trabalho cujo título também evoca uma espécie de estrutura prestes a ser rompida, onde a água era pensada como um veículo de conexão temporal e espacial. A mesma ideia aparece em Se o mar tivesse varandas (2017), com fotos de seus antepassados, impressas em tecido, banhadas em águas de mares e rios, e em (Outros) Fundamentos, que encerra a trilogia de videoinstalações com incursões feitas pela artista em Lagos (Nigéria) e Cachoeira (Bahia), além do Rio de Janeiro, criando conexões atlânticas nas investigações sobre sua história familiar. Nos três trabalhos, também já estava em processo uma voz literária da artista enquanto escritora, que aparece mais consolidada em Água é uma máquina do tempo, sua primeira incursão oficial na literatura.

Em ensaio publicado em uma revista acadêmica sobre o mesmo trabalho, Aline Motta comenta sobre influências de cosmologias centro-africanas e afro-brasileiras que a ajudaram a formular a ideia da água pensada como um veículo de comunicação temporal. Uma delas é um sistema chamado de Cosmograma Bakongo, que associa os ciclos da vida aos ciclos da natureza, simbolizados pela duração de um único dia. Por essa lógica, nascemos todos os dias às seis da manhã; ao meio-dia nos tornamos adultos; às seis da tarde envelhecemos e à meia-noite viramos ancestrais. E o que conecta esses diferentes tempos é uma fina camada de água chamada Kalunga. “Nessa forma de ver o mundo, a água guarda memória, a água é vista como um veículo, a água é uma máquina do tempo. É uma iniciação", escreve a artista.

Crime ambiental

Laís Machado é outro nome da cena artística atual que vem pesquisando sobre a água também a partir de perspectivas ancestrais. Ter nascido em Salvador e passado a infância na comunidade de Amaralina, onde o avô era pescador, foi um fator decisivo: “Sou uma pessoa negra e soteropolitana, então sempre tive uma relação muito profunda com o mar. Meu programa de criança mais recorrente era ir à praia no fim de semana. Na medida que fui me tornando artista, comecei a atribuir mais significados a essa dimensão na minha vida, pensando em outras noções também políticas e espirituais”, conta.

Os dois aspectos aparecem em Elegia das filhas das águas (2019), que integrou a mostra Magia Negra, no Goethe-Institut de Salvador. Referindo-se no título ao gênero poético de teor melancólico, o vídeo mostra um vaso de barro ou quartinha, como é chamado quando usado em rituais de religiões de matriz africana, representando a ligação entre o mundo material e espiritual, sendo inundado por um líquido preto. A referência é um episódio hoje já pouco lembrado: o crime ambiental ocorrido em agosto de 2019, quando manchas de óleo invadiram mais de 3 mil quilômetros da costa brasileira, especialmente do Nordeste.

Iminência do colapso

No ano seguinte, durante a pandemia, Laís Machado foi convidada para participar do festival digital Latitude, organizado pelo Goethe-Institut. Foi quando surgiu Canção das filhas das águas (2020), exibido em diversas exposições e festivais desde então. “Dessa vez eu já estava buscando falar sobre o fim do mundo sob a perspectiva da água, pensando nas condições materiais que nos trouxeram para a iminência do colapso”, comenta a artista, que finaliza nesse momento um terceiro vídeo, também pensando a sequência como uma trilogia.

Se o interesse de Laís Machado pelas águas foi ganhando contornos mais políticos quando começou sua trajetória artística – influenciada, especialmente, por autoras como Beatriz Nascimento (1942-1995), ao pensar o Oceano Atlântico como um lugar de liberdade e conexão para a Diáspora Africana – não há como escapar de uma relação afetiva e pessoal com o mar de quem cresceu cercada por ele.
 
Jubarte

Jubarte | Laís Machado, 2023

No seu caso, esse vínculo inclui uma paixão e um conhecimento profundo sobre as baleias Jubarte, avistadas por ela todos os anos na costa da Bahia durante o inverno. Foi quando, justamente, aconteceu o lamentável vazamento de óleo em 2019, até hoje não criminalizado. “Tem muitos aspectos do meu vínculo com as baleias que já estavam presentes em minhas obras: a preocupação com o colapso ambiental, a relação que elas têm com a comunicação, a dança e a música. Até mesmo com os trânsitos e migrações”, afirma. Ela lembra que é comum baleias vindas de Angola serem avistadas na costa baiana e vice-versa. Em 2019, uma Jubarte foi identificada na costa de Salvador 21 anos após ter sido fotografada próxima à cidade de Cabinda.

Enquanto isso, em outra importante região na história das rotas afro-atlânticas, obras de Aline Motta são vistas desde maio no cais da Ilha de Gorée, no Senegal, parte de um projeto organizado pela Fondation Dapper. Da praia, onde chegam as embarcações, é possível ler uma faixa com um verso de Se o mar tivesse varandas, traduzido para o francês:

“Se o mar tivesse varandas
as ondas passariam recolhendo testemunhos
e a memória de uma costa
seria passada à outra
chocando-se contra as rochas”.

As conexões do Atlântico, afinal, contam outras histórias no presente.

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