Rios ocultos sob metrópoles  Riqueza hídrica sob nossos pés

Filha Natural, 2019.
Filha Natural, 2019. © Aline Motta

Movimentos organizados pela sociedade civil resgatam a história e o acesso a cursos d´água que o poder público e a especulação imobiliária baniram do horizonte urbano. Só na cidade de São Paulo, são 300 rios escondidos.

Assim como tantas outras cidades do mundo, São Paulo foi fundada à beira de cursos d´água, mais precisamente numa colina entre o Rio Tamanduateí e o Ribeirão Anhangabaú, onde os indígenas que ali viviam já partilhavam de suas águas para defesa, pesca e diversão. No coração da metrópole, esses dois importantes fluxos fluviais são alimentados por riachos e córregos menores, também eles hoje canalizados e encobertos sob ruas e avenidas.

“São Paulo tem 300 rios escondidos sob a cidade. São milhares de quilômetros e ninguém falava disso”, diz o arquiteto e urbanista José Bueno. Em 2010, ele ouviu do geógrafo e educador Luiz de Campos Jr., estudioso da hidrografia escondida de São Paulo, que não seria possível caminhar por cinco minutos a partir de qualquer ponto da cidade sem passar por um curso d´água. Bueno quis tirar a prova e, numa caminhada em seu bairro, o Butantã, chegou a uma água que brotava sob o muro da Universidade de São Paulo (USP): a nascente do riacho que chamaram de Iquiririm, que significa rio silencioso na língua tupi-guarani.

“Rios e ruas”

Através do Instituto Harmonia, uma pequena empresa de treinamento e educação em sustentabilidade, o arquiteto e o geógrafo criaram o projeto “Rios e Ruas”, que vem atraindo a atenção da sociedade para a pauta dos rios ocultos ainda vivos sob a metrópole. “Foi uma notícia que ecoou, pois, de alguma forma, tocou as pessoas numa cidade que sempre encarou seus rios como um problema a ser dominado”, diz Bueno. Por meio de exposições cartográficas, debates e caminhadas exploratórias, o “Rios e Ruas” procura sensibilizar os habitantes da cidade para a natureza escondida sob ela: “Do que é feita a paisagem urbana? Só de concreto? A gente acha cursos d´água olhando o relevo, observando a vegetação”, diz Bueno.

Estudiosos, artistas e ativistas pelo direito à cidade marcaram São Paulo com ações de proteção de nascentes...

Se o projeto “Rios e Ruas” foi um dos pioneiros a levantar e difundir conhecimentos sobre a castigada hidrografia da cidade, hoje ele é apenas mais um dos vários movimentos que envolvem a população no resgate de inúmeros córregos. Na última década, estudiosos, artistas e ativistas pelo direito à cidade marcaram São Paulo com uma série de ações de proteção de nascentes, cultivo de hortas em áreas públicas, grafites e placas de ruas que indicam a presença de águas subterrâneas. Além de intervenções diretas de escavação e represamento de pequenos lagos e do desenvolvimento independente de mapas hidrográficos para acrescentar novos cursos que vão sendo identificados.

Resgate do Rio Bixiga

Recentemente, a trupe do Teatro Oficina, no bairro do Bixiga, conquistou, depois de uma luta de 40 anos, que a prefeitura de São Paulo destinasse um terreno disputado com um grupo empresarial para a formação de um parque ao lado do icônico prédio do teatro, projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi. Sob o terreno, onde hoje funciona um estacionamento, passa o sucumbido Rio Bixiga, e o plano é expô-lo novamente à luz do sol. A abertura desse rio na região central da cidade pretende contribuir para a redução da temperatura local, considerando que o bairro tem uma das maiores ilhas de calor da metrópole e é uma das regiões da cidade com pior índice de área verde por habitante.  
 
Nas periferias, é comum que a falta do verde esteja aliada a uma infraestrutura urbana deficiente, em meio a uma alta concentração demográfica. Um exemplo é a comunidade Vila Flávia, localizada no bairro de São Mateus, zona leste da cidade, onde o poluído córrego Cangueiras começou a ser recuperado em 2016 pela Prefeitura de São Paulo. O tratamento dado seguiu o conceito inovador do ex-assessor da Secretaria de Obras de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, Carlos Jesus Campos, que previa a separação do esgoto jogado no córrego em um duto, que seguiria dentro do seu leito, evitando o tamponamento das águas limpas.

Em 2022, um projeto de alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) ofereceu uma solução paisagística para um trecho do córrego, elaborado em parceria com o coletivo São Mateus em Movimento, de educação, cultura e arte, que mantém uma galeria de grafite no local. Hoje, uma visita ao Cangueiras deixa evidente a necessidade urgente de manutenção: o rompimento no cano de águas poluídas, o lixo acumulado no leito e novas obras da prefeitura, que instalaram canaletas de concreto em outros trechos, acabaram desvirtuando o projeto original, que previa manter o leito natural do córrego.

Técnicos em saneamento defendem a ideia de manter abertos os cursos dos rios que são possibilidade de vida...

“O poder público continua colocando concreto para canalizar os cursos d´água, mas, pelo menos agora não estão mais sepultando”, diz Campos ao avaliar as obras. “Isso se deve à luta de muitas pessoas, muitos técnicos em saneamento, que desde os anos 1990 defendem a ideia de manter abertos os cursos dos rios que são possibilidade de vida”, completa o especialista, apontando peixinhos que a nadar em pontos de águas límpidas.

“Entre Rios e Ruas”

Em Belo Horizonte, o projeto “Entre Rios e Ruas” (2006), idealizado por Isabela Prado, artista e professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, tem entre suas iniciativas a intervenção “Sobre o rio”, que, executado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, sinaliza com 230 placas a presença dos cursos d´água subterrâneos na cidade. A indicação do córrego Acaba-Mundo, por exemplo, assim como outras placas que associam o espaço urbano à sua antiga natureza hídrica, revela aos transeuntes um pouco da geografia e da história da capital planejada de Minas Gerais.

O pesquisador e geógrafo Alessandro Borsagli, autor de três livros sobre a hidrografia de Belo Horizonte, coordena também um site com rico registro fotográfico. Borsagli considera que o conceito “violência lenta”, desenvolvido pelo ambientalista e pensador sul-africano Rob Nixon como um processo gradual e quase imperceptível de destruição, caracteriza bem o tratamento dado aos rios urbanos na cidade.

Obras de infraestrutura imensas são muito mais lucrativas para certos setores do que reabilitar um curso d'água...

Ao mesmo tempo que os cursos d´água iam sendo ocultados da paisagem, acontecia a “urbanização de suas planícies de inundação com grande ganho imobiliário”, descreve o pesquisador, que, diante das enchentes em janeiro de 2024, recorrentes a cada verão, lembra em seu site os 100 anos do início das intervenções nos rios da capital. “E hoje continuam defendendo a canalização, obras imensas de infraestrutura, que são muito mais lucrativas para certos setores do que reabilitar um curso d'água, recuperar a cabeceira, cuidar do lixo e do esgoto, criar novas áreas permeáveis nas cidades”, aponta.

“Este Rio é Meu”

Esse também é o histórico de muitos cursos d´água da cidade do Rio de Janeiro, inclusive do Rio Papa Couve, que fica sob a avenida Marquês de Sapucaí, a grande passarela do Carnaval; ou do Rio Carioca, que nasce na Floresta da Tijuca e deságua na Praia do Flamengo, na Baía de Guanabara. Sepultado sob ruas e extremamente maltratado nos trechos abertos, o Carioca levou a jornalista Silvana Gontijo a fundar, em 2014, o movimento “O rio do Rio”, que mobilizou escolas, sociedade civil e poder público em seu resgate.

As ações de educação ambiental, os mutirões de limpeza e o monitoramento da bacia do Carioca levaram à canalização do esgoto de seu leito e a seu tombamento como patrimônio histórico e cultural pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) em 2019. O projeto se espalhou e, sob o nome “Este Rio é Meu”, foi implantado em parceria com a Secretarias Municipais de Meio Ambiente e de Educação nas mais de 1500 escolas municipais do Rio. Patrocinado pela concessionária de água e saneamento Águas do Rio, o projeto atinge hoje outros 267 rios, córregos e canais cariocas.

A consciência dessa paisagem como patrimônio pode frear a pressão imobiliária e industrial...

Em Santa Cruz, no extremo da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o professor e pesquisador José Renato Soares Pimenta debateu com seus alunos adolescentes sobre a realidade dos canais do Itá e Vala do Sangue, que são parte do histórico sistema de drenagem da região desde a era colonial e estão sob forte pressão do setor imobiliário.

Pimenta, que estuda o sistema de canais do bairro e defende a possibilidade de seu tombamento como patrimônio, considera que o programa “Este Rio é Meu” possibilita a ressignificação afetiva do espaço. “A consciência dessa paisagem como patrimônio pode frear a pressão imobiliária e industrial sobre as cidades e seus recursos hídricos”, diz. Nesse sentido, movimentos cidadãos para a reabilitação dos rios urbanos resgatam a urgência e o desejo de se viver em cidades mais integradas à natureza.

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