Planejamento ambiental  Alternativas indígenas para um mundo pós-pandêmico mais sustentável

Na Amazônia, os Apurinã veem suas palmeiras, que são tratadas como seus ancestrais, como estando diretamente ligadas às chuvas.
Na Amazônia, os Apurinã veem suas palmeiras, que são tratadas como seus ancestrais, como estando diretamente ligadas às chuvas. Foto (detalhe): © Pirjo Kristiina Virtanen

Os investidores e os acordos comerciais desempenham um papel significativo ao ditar o que as pessoas produzem, cultivam, extraem, fabricam e, por outro lado, o que é protegido. Quando essas decisões substanciais são tomadas, as filosofias sociais indígenas, o conhecimento ecológico e os valores precisam ser incluídos em uma extensão muito maior.

As nações indígenas vivem em todos os continentes, e uma biodiversidade excepcional é preservada nos territórios indígenas. Isso pode ser explicado, em grande parte, pelo fato de que, para os povos indígenas, as entidades individuais existem em termos de relações e interações, formando sistemas sócio-ecológicos. No pensamento indígena, os seres humanos, as plantas, os animais e outros modos de vida são interdependentes. Por exemplo, na Amazônia, os Apurinã veem suas palmeiras, que são tratadas como seus ancestrais, como estando diretamente ligadas às chuvas. Da mesma forma, para os Sámi, certas montanhas, como as pessoas, têm seus próprios joiks (tradição musical), evidenciando suas semelhanças com os humanos.

No entanto, as economias insustentáveis das sociedades dominantes intensificaram o uso da terra e a perda de biodiversidade de forma catastrófica. A complexa rede de negócios, investimentos e acordos de livre comércio baseiam-se na ideia de crescimento exponencial. O Acordo Comercial entre a União Europeia e o Mercosul pode intensificar as exportações para a Europa de carne bovina, soja, açúcar, arroz, milho e madeira para celulose, que atualmente já são produzidos de forma insustentável. Esse crescimento está ligado a subsídios para agroquímicos, fertilizantes e indústrias de infraestrutura, entre outros. Os planos para a Ferrovia do Ártico, para dar apenas um exemplo, estavam intimamente ligados aos planos de extração de recursos nesta região.

As mudanças ambientais e climáticas já perturbaram as relações nos ecossistemas, incluindo os seres humanos. Inundações, temperaturas extremas e mudanças de estação são evidenciadas desde a tundra do Ártico até as florestas tropicais da Amazônia. Nenhum lugar existe no vácuo: o derretimento do gelo do Ártico afeta outras partes do mundo e o que acontece com a umidade da Amazônia é sentido na Europa.

Crimes ambientais violam direitos indígenas

No mundo pós-pandemia, é hora de refletir se os tomadores de decisão continuarão seguindo os modelos antigos ou criarão algo novo. Imaginar o futuro distante poderia favorecer modelos mais saudáveis de economia. As soluções e economias circulares e baseadas na natureza, bem como o decrescimento, que significa uma redução sistemática do consumo, já prometem planos alternativos de longo prazo para o planeta. No entanto, isso pode ser eficaz para impedir a apropriação de terras, a contaminação e os diversos impactos ambientais, que são vistos por muitos como crimes contra a humanidade?

Os crimes ambientais violam especialmente os direitos indígenas. Para as sociedades indígenas, a destruição ambiental também é um perigo cultural, linguístico e econômico. Esses aspectos também fazem parte do patrimônio cultural holístico dos povos indígenas – tanto material quanto imaterial. Portanto, as mudanças nas terras, na água e nas florestas são catastróficas para as sociedades indígenas e interferem nas relações das forças de produção de vida.

A própria defesa de suas terras já levou a um aumento da violência entre os povos indígenas. Na Amazônia, por causa das invasões e da falta de fiscalização do Estado nas terras indígenas, as mortes de defensores das terras indígenas aumentaram nos últimos anos. Sempre que possível, as comunidades locais da Amazônia continuam a realizar sua própria vigilância e proteção territorial, mas elas dispõem de recursos limitados.

Os povos indígenas precisam estar envolvidos

Os Estados-nação ignoraram amplamente suas responsabilidades políticas e não consultaram as nações indígenas. Houve até tentativas de mudar a legislação, e concessões e permissões de mineração, por exemplo, foram concedidas até mesmo em áreas de preservação. Por lei, a consulta é obrigatória sempre que uma atividade econômica, medida administrativa ou legal possa afetar terras indígenas, seus recursos e seus modos de vida. Esse direito é reconhecido em muitas constituições, na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (1989), na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) e na Convenção sobre Diversidade Biológica (1993), que menciona um conjunto de princípios para avaliar os impactos de novos projetos em terras indígenas, bem como suas dimensões socioculturais.

Bancada de trabalho com ferramentas de arte indígena em Fairbanks, no Alasca. Bancada de trabalho com ferramentas de arte indígena em Fairbanks, no Alasca. | © Pirjo Kristiina Virtanen Consulta livre significa não apenas informar, mas também estabelecer um diálogo de longo prazo. Não se trata apenas de uma audiência pública. Deve-se dar tempo para considerar os impactos negativos e positivos e para fazer perguntas, por exemplo, quando a burocracia ou certos termos técnicos causarem problemas de compreensão. Em 2018, o Mecanismo de Especialistas sobre os Direitos dos Povos Indígenas lançou seu estudo sobre o consentimento livre, prévio e informado como uma norma de direitos humanos. Ele se refere ao fato de que os Estados-nação devem garantir que os povos indígenas tenham os recursos e a capacidade de se envolver efetivamente em processos de consulta.

Os povos indígenas são atores importantes que precisam estar envolvidos em negociações sobre investimentos, em acordos de livre comércio e em negócios internacionais, nacionais e regionais. Além disso, os povos indígenas também são atores econômicos e precisam de mercados. O risco é que os investimentos não levem em consideração os povos indígenas e seus produtos sustentáveis.

Criação de conhecimento mais inclusivo

Os povos indígenas demonstraram maneiras eficazes de proteger a vida em seus territórios, e vale a pena ouvi-los. Suas filosofias sociais baseadas na terra não veem a Terra como um espaço infinito a ser explorado tendo em vista o lucro em curto prazo. Essas filosofias também não se baseiam em categorias binárias, como “humano” e “natureza”, nem ocupam espaços sociais diferentes: tanto os humanos quanto a natureza fazem parte da “cultura” e existem em relação uns aos outros. Tais pensamentos podem criar novas práticas, novos modelos e novas legislações além dos contextos indígenas.

Há muitas informações científicas já disponíveis que foram produzidas com sociedades indígenas, informações que poderiam ser muito mais beneficiadas de forma eticamente sustentável. Em especial, nos últimos anos, houve vários programas de estudos indígenas e pesquisadores acadêmicos indígenas que levaram novos conhecimentos à esfera acadêmica. Essas informações têm grande potencial para contribuir em prol da criação de um conhecimento mais inclusivo e para a compreensão de diferentes realidades e valores sociais. Para a sociedade dominante, as vozes indígenas podem oferecer novas perspectivas sobre o presente sustentável e o futuro.

Considerando o futuro pós-pandemia, o mero reconhecimento das leis ambientais e indígenas não é suficiente; elas também precisam ser implementadas e desenvolvidas. Isso requer um planejamento cuidadoso, para garantir a participação dos habitantes locais nos processos de tomada de decisão e em seus mecanismos de acompanhamento. Mesmo quando ocorrem diálogos, a decisão política final geralmente é outra questão e pode, de fato, contrastar com as vozes indígenas. Para a sobrevivência do planeta, o conhecimento e os valores dos povos indígenas ajudarão a construir um futuro mais integrado em nosso mundo pós-pandêmico.

Sobre o projeto

 O título do projeto vem da longa batalha dos inuítes para que seus direitos sejam vinculados às mudanças climáticas. O livro homônimo de Sheila Watt-Cloutier (2015, Allen Lane Publication) é um testemunho de seu trabalho pioneiro em conectar as mudanças climáticas aos direitos humanos. Okalik Eegeesiak, ex-presidente do Conselho Circumpolar dos Inuítes (ICC), usou a expressão em seu discurso na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática – COP 21, no dia 3 de dezembro de 2015, em Paris, França.